Entre os dias 19 e 22 de junho, mais de 100 pessoas participaram do I Encontro Estadual do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), realizado em Porto Alegre. A atividade contou com a presença de representantes de diversas regiões do Rio Grande do Sul e de militantes vindos de diferentes estados do país, marcando um momento histórico de articulação coletiva em torno da luta por soberania dos territórios e enfrentamento ao modelo mineral predatório vigente no Brasil.

O Estado

Atualmente, o estado gaúcho conta com mais de 150 empreendimentos minerários em processo de licenciamento ambiental — muitos deles sobrepostos a áreas de produção agrícola, reservas hídricas e comunidades tradicionais. Essa expansão predatória coloca em risco não apenas o meio ambiente e a soberania alimentar, mas também a saúde coletiva, diante de relatos crescentes de contaminação do solo, da água e do ar. Desde o início de sua atuação no estado, o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) esteve na linha de frente da resistência e, em 2019, foi um dos protagonistas na criação do Comitê de Combate à Megamineração do RS. Junto a mais de 50 entidades, o movimento teve papel decisivo na mobilização que impediu a implantação do projeto da mineradora Copelmi, que pretendia explorar uma reserva estimada em 166 milhões de toneladas de carvão a apenas 1,5 km do Rio Jacuí — manancial responsável por mais de 80% da água que abastece Porto Alegre e parte da Região Metropolitana.

O Encontro

A abertura do encontro foi marcada por uma potente mística de matriz africana, conduzida pelo grupo Omo Odu Ose Meji, que realizou o tradicional Alujá de Xangô no Mercado Público de Porto Alegre — espaço de forte simbologia para a cultura afro-brasileira na cidade. Com Bará “sentado” no centro do mercado, a mística evocou caminhos de fartura, sabedoria ancestral e resistência dos povos negros frente à destruição capitalista.

Na mesa de abertura, a dirigente Iara Reis (MAM/RS) destacou a presença massiva do povo negro na plenária e reforçou a importância de compreender o passado como chave para o futuro. “Faz menos de 140 anos da falsa abolição do povo negro — e o Brasil foi o último país das Américas a realizá-la. Seguimos submetidos a um processo contínuo de alienação, ignorância e massacre. Romper com essa estrutura exige compreensão crítica — e só vamos compreender se estudarmos, se enfrentarmos nossa história de frente.”

Iara Reis, dirigente nacional do MAM no Rio Grande do Sul / Foto: Jerê Santos

O professor Ary Miranda, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, apresentou considerações sobra a conjuntura internacional e nacional., destacando a crise estrutural do capitalismo que acentua significativamente as desigualdades sociais, com aumento da concentração de riqueza com poucos assim como aumento da pobreza e a da pobreza extrema, conforme reconhece a própria ONU.

Ary Miranda, Fiocruz / Foto: Jerê Santos

Três componentes foram considerados na atual conjuntura mundial: a decadência do império dos EUA, embora permaneça ainda como a maior potência imperialista, pela maior força militar, pela moeda forte, o dólar e pelas tecnologias de ponta que possuem. As políticas econômicas erráticas do Trump, são elementos dessa decadência, cujos resultados são bastante incertos tanto para o mundo como para o próprio EUA.

Outro componente, relacionado ao primeiro, é o crescimento da China como potência econômica mundial, que faz com que o centro da economia mundial esteja num processo de deslocamento para a Ásia. Hoje alguns países já fazem transições comerciais em suas próprias moedas, não em dólar. Em alguns processos tecnológicos de ponta, como tecnologias de informação/comunicação, a China já supera os EUA, assim como suas relações comerciais com o resto do mundo, como, por exemplo, hoje, é o maior parceiro comercial do Brasil.

Também foi destacado nesse cenário internacional a perspectiva de uma guerra ampliada na Europa e no Oriente médio, tendo em vista os conflitos Rússia-Ucrânia e o massacre que Israel vem impondo aos palestinos, que se constituiu como uma tentativa de limpeza étnica, dada a brutalidade de suas agressões, além dos últimos ataques de Israel ao Irã.  Nesse contexto, entre 2023 e 2025 os países mais desenvolvidos aumentaram em 2,3 % o investimento militar, estando o mundo, hoje, investindo em torno de 2,3 trilhões de dólares, ao ano, em armamentos.

No que diz respeito ao contexto nacional, o país vive, desde os anos 1980 um franco processo de desindustrialização, seguido de forte reprimarização, centrada no agronegócio e na mineração, num processo neocolonial, direcionado pelo neoliberalismo que tem na financeirização desregulada um de seus componentes. Ademais há um fenômeno da mudança da lógica produtiva que vem impondo o que tem sido chamado de capitalismo digital, sustentado pelas novas tecnologias de informação/comunicação, associada à indústria 4.0, que substitui o trabalho vivo pelo trabalho morto (máquinas). Com isso temos uma nova era do mundo do trabalho, com contratações por terceirizações, pejotização, uberização, trabalho zero hora, etc.. O empreendedorismo está sendo assimilado pelo trabalhador como um ganho, embora não tenha qualquer direito social trabalhista. Esse fenômeno leva à desorganização dos trabalhadores e enfraquecimento da luta de classes.

Cabe destacar que essas tecnologias estão já sendo incorporadas nos processos produtivos da mineração no Brasil, que hoje já tem em torno de 2 mil municípios minerados.

Ary Miranda, Fiocruz / Foto: Jerê Santos

Ao longo do encontro, experiências de resistência e organização popular foram compartilhadas com força. Na mesa sobre as articulações populares contra a mineração, Izabelly Miranda (MAM/PA) relatou a atuação do movimento em territórios devastados da Amazônia, ressaltando como as comunidades continuam firmes em defesa de sua cultura e modo de existir, mesmo diante da contaminação da água e do solo. Já Mãe Carla – Ifakemi Carla Omo Obalúfé, primeira Iyanifá do Rio Grande do Sul, defendeu o reconhecimento dos saberes tradicionais como formas legítimas de conhecimento e educação. “Primeiro a gente senta pra aprender. Depois, levanta pra ensinar. E então vai para os territórios. Somos os rios, as águas, os territórios que habitamos — e hoje esses rios estão contaminados por rejeitos e metais pesados.”

Foto: Lívia Fernandes

A noite foi ocupada por uma roda de escuta auto-organizada do Coletivo Nacional de Mulheres do MAM, com a participação de jovens, quilombolas, agricultoras e representantes de povos de terreiro. O espaço reafirmou a luta das mulheres como parte essencial da resistência popular, denunciando os impactos da mineração sobre os corpos e vidas das mulheres do campo, da cidade e das florestas. Para Fabrícia Carvalho, do Coletivo, “denunciar o patriarcado, o racismo e o capital mineral é também anunciar outras formas de existir e lutar. Onde tem mineração, tem mulheres em luta.”

Atividade Coletivo de mulheres / Foto: Lívia Fernandes

Saúde, mineração e renda mineral

No dia seguinte, a mesa sobre saúde, trabalho e renda mineral trouxe análises contundentes. A pesquisadora Maria Juliana Moura Corrêa (Fiocruz) apontou a ausência de políticas públicas efetivas para lidar com os impactos da mineração na saúde das populações atingidas. Denunciou a invisibilidade da silicose no Sul, a contaminação das águas e alimentos, e a ausência de diagnóstico adequado. “Mesmo com todas essas dificuldades, 44% da população daquela região chegou com diagnóstico de silicose — e os demais, com sintomas não reconhecidos oficialmente”, afirmou. Ela defendeu a vigilância popular como estratégia de enfrentamento e autonomia dos territórios.

Foto: Lívia Fernandes

A dirigente Marta Freitas (MAM/MG) complementou com uma crítica ao mundo do trabalho nas mineradoras, denunciando a precarização, o uso de tecnologia para exclusão da força de trabalho e a apropriação do discurso de transição energética para justificar novas formas de espoliação. “Hoje a mineração usa a violência como forma de garantir seus direitos — ela impõe sua condição às comunidades. O modelo atual não apenas devasta o meio ambiente, mas também as pessoas.”

Encerrando o ciclo de debates, Eduardo Raguse (MAM/RS) apresentou uma análise da renda mineral no estado, criticando o uso distorcido da CFEM (Compensação Financeira pela Exploração Mineral) e a dependência fiscal dos municípios minerados. “A mineração rouba o nosso presente e o nosso futuro — ela tira a perspectiva das próximas gerações em nome de um lucro imediato e concentrado.” Propôs como alternativa a criação de conselhos populares para controle dos recursos e a subordinação da mineração à soberania dos povos.

Desde 2019, o MAM, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), desenvolve ações integradas de pesquisa e intervenção em saúde nos territórios afetados pela mineração, por meio do projeto Mineração e Impactos Socioambientais. A iniciativa busca identificar e denunciar os efeitos da atividade minerária sobre a saúde coletiva e o meio ambiente, com foco nas populações mais vulnerabilizadas. Atuando diretamente em comunidades do Rio Grande do Sul, o projeto tem contribuído para mapear áreas contaminadas, fortalecer a vigilância popular em saúde e promover o protagonismo das comunidades na luta por direitos e reparação. Os territórios acompanhados incluem regiões atingidas pela extração de carvão, pedras semipreciosas e outros empreendimentos que ameaçam a soberania alimentar, os recursos hídricos e os modos de vida tradicionais.

Rumo ao 2ºEncontro Nacional

Por fim, Charles Trocate (MAM/PA) trouxe uma síntese crítica do modelo mineral brasileiro, reforçando que não se trata de uma questão apenas econômica ou ambiental, mas de um projeto político de morte. Para ele, a mineração é a face moderna da colonização: imposta, violenta, e legitimada por um Estado que prioriza o lucro acima da vida. “O atual modelo mineral brasileiro é baseado na pilhagem, sustentado por uma democracia que tem cor, classe e território definidos. E não há futuro possível com esse modelo.”

Foto: Lívia Fernandes

O Encontro foi encerrado com uma plenária aberta, em clima de participação e mobilização coletiva, apontando os rumos rumo ao II Encontro Nacional do MAM, que será realizado em agosto, na cidade de Fortaleza (CE). Sob o lema “Lutar pelo território, controlar o subsolo”, o movimento reafirma seu compromisso com a justiça ambiental, a autodeterminação dos povos e a construção de um novo projeto de país, onde a vida e os territórios estejam no centro.

Solidariedade

Foto: Jerê Santos

Durante a atividade os participantes também participaram de entrega de quentinhas feitas na cozinha Solidária Isokan Panela Ty Oya, que organizou alimentação em  territórios com famílias afetadas pelas enchentes provocadas pela crise climática que assolou o estado. A Cozinha Solidária está  localizada em um terreiro tradicional de Porto Alegre e foi criada há pouco mais de um ano em parceria com o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM). A iniciativa atende atualmente cerca de 200 famílias e vai além da segurança alimentar. O espaço se firmou como ponto de resistência e mobilização, promovendo debates sobre racismo, violência contra a mulher e desigualdades sociais. Neste sábado (21), a cozinha foi uma das primeiras a receber a entrega de cestas da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), com a presença do presidente da instituição, Edigar Preto.  Durante as enchentes, articulada com a Federação Quilombola, a cozinha participou da organização de 14 cozinhas emergenciais — e segue ativa, mesmo enfrentando dificuldades para garantir itens básicos como proteína. “Isso aqui é resistência”, afirma Davison Soares, militante do MAM e representante da Federação Quilombola do RS.

 

Movimento pela Soberania Popular na Mineração