Queixa crime e interdito proibitório, contra lideranças e populares, são acionados frequentemente pela mineradora nas últimas décadas na Amazônia.

 

Seu José tem aproximadamente 50 anos. Está no interior do Maranhão sentado num banco de madeira de frente sua casa, debaixo de uma mangueira carregada com mangas verdes. Balança os pés calçando uma sandália de dedos, usa uma calça social bege e uma camiseta de mangas longas com quase todos os botões abertos, por conta do calor.

Pacato, sereno, sem muita conversa, com as mãos entrecruzadas sobre o colo se mostra muito observador e não demonstra fisicamente uma ameaça a quem quer que seja.

Pedreiro de profissão desde menino. “Foi o que aprendi com meu avô que me criou, não tive pai, minha mãe morreu cedo, então trabalho desde criança nessa profissão de construir e reformar casa, sei um pouco de mecânica também”, fala com um sorriso maroto.

Nesse mesmo banco, um final de tarde, depois de voltar do trabalho, comendo uma manga, recebeu um homem que lhe entregou uma intimação; estava sendo processado pela Vale/SA, uma das maiores mineradoras do mundo.

Queixa Crime

Seu crime: segundo consta no processo criminal de queixa crime movido pela mineradora, seu José teria feito justiça com as próprias mãos ao participar de uma manifestação na ferrovia por conta do atropelamento de uma criança pelos trens da Vale.

“Em algumas manifestações na ferrovia, a Vale utiliza-se do entendimento do artigo 345 do Código Penal Brasileiro, dizendo que as pessoas utilizam exercício arbitrário da força e alegando que estariam ocupando um local, no caso a ferrovia, para conseguirem um benefício próprio”, explica Fernanda Souto Rodrigues, advogada da Associação Justiça nos Trilhos- JNT.

Junto a ele mais dez pessoas foram processadas pelo mesmo motivo. O processo foi arquivado pela alegação de falta de provas contundentes contra os acusados, situação constante nos processos movidos pela transnacional mineira contra moradores das comunidades.

“Geralmente os processos não vão adiante porque a Vale não consegue notificar de maneira correta, pois não utiliza nome completo, ou correto com sobrenome, ou menciona apelidos. Outra questão, que impede o andamento do trâmite jurídico, é que a empresa não consegue dizer na queixa crime o que cada pessoa fez, o que é uma exigência do processo penal. Assim, o juiz avalia que não existe autoria definida e conduta qualificada das pessoas e encerra o processo”, pontua a advogada.

Mesmo livre do processo, seu José avalia que foi muito ruim e intimidador o tempo que durou toda essa história “Ah, a gente fica chateado, não somos bandidos para ser processado assim, por nada, fiquei meio depressivo” relata.

Interdito proibitório

Fazendo dupla com a queixa crime, outro procedimento jurídico na esfera cível muito utilizado pela Vale é o Interdito Proibitório.

“É uma prevenção à ameaça da posse, a mineradora entendendo que essas manifestações podem se repetir, ela usa do interdito proibitório contra lideranças para que esses não se aproximem da via férrea, ou sua região de produção, que geralmente é dentro das comunidades onde essas pessoas moram, provocando o cerceamento do direito de ir e vir”, ressalta Fernanda.

As centenas de casos de interdito proibitório até poderia parecer coincidência, mas para o advogado Rafael Modesto, é uma estratégia da Vale no Corredor de Carajás.

“É preciso deixar evidente que os processos movidos pela Vale não estão fora da liberdade processual, o que existe são as manobras, como essa jurídica que ela utiliza muito: o interdito proibitório, para empresa empregar coerção, amedrontar e assustar as comunidades que ela mesmo viola”, explica.

Recentemente, o advogado defendeu na justiça o Conselho Indigenista Missionário – CIMI e a professora indigenista Rosana de Jesus de Nei que faz parte da entidade no Maranhão. Ela sofreu uma ação de interdito proibitório por parte da Vale, que alegou que a professora, que ministra aula na Terra Indígena dos Awá Guaja, no interior do estado maranhense, cortado pelos trilhos da Vale, teria ajudado os indígenas a obstruir os trilhos da empresa num ato de protesto em julho de 2016.

“No dia da manifestação dos indígenas na linha férrea, eu nem estava na TI, mas parece que o processo tem um viés contra nós e o CIMI pelo trabalho que fazemos muitas vezes denunciando as mazelas provocadas da Vale nos territórios”, alerta Rosana.

Em julho de 2023, a juíza Kátia Coelho de Souza Dias, titular da 1 Vara Cível do Maranhão, indeferiu os pedidos impetrados pela mineradora Vale alegando que não há comprovação na interferência na ação do CIMI nem da missionária sobre os Awá contra a mineradora.

Perfil dos processados

Ao longo dos 27 municípios, no Corredor de Carajás, nos últimos 15 anos entre Maranhão e Pará, chama atenção que os processados pela Vale, são indivíduos que sofrem ou sofreram alguma forma de violação ambiental, social, econômica ou familiar causados pela operação da empresa nas localidades onde atua.

Isso é o que constata a advogada Fernanda. “Essas pessoas protestaram porque tiveram parentes atropelados pelos trens da Vale que vieram a óbito ou foram mutilados, porque perderam animais na linha férrea, porque pedem uma travessia decente e segura entre as comunidades cortadas pela linha férrea, melhorias na segurança da ferrovia, além de crimes ambientais, como secas dos igarapés e rios que dificultam a pesca e agricultura ou a contaminação do solo e da água” lista.

Conforme a advogada diz, trata-se então de homens e mulheres: “trabalhadores, que em grande maioria vivem na zona rural ou na zona urbana periférica, que exercem posição de lideranças ou não nas comunidades, que muitas vezes não tem acesso à justiça pela localização distante das defensorias públicas, mas que em algum momento por questões provocadas pela própria empresa entenderam que a forma de reivindicar seria a manifestação na  região próxima aos trilho e exercendo seu direito previsto na constituição. Entretanto, a empresa responde a essas manifestações com processos na área civil e criminal”, acrescenta.

Arrefecimento da luta 

Como já foi revelado no início dos anos 2000, pelo ex funcionário da empresa Vale, André Almeida, existe um esquema ilegal de espionagem da mineradora contra jornalistas, movimentos sociais e lideranças comunitárias, além de governos e funcionários da própria corporação.

A empresa tem um verdadeiro quartel onde mapeia quem são as pessoas, onde vivem, o que fazem, do que participam e por onde circulam, sendo alvos prioritários das queixas crime e do interdito proibitório.

“Imagina chegar na sua casa uma pessoa levando uma intimação pessoal, que você lê e observa que do outro lado tem a Vale S/A, uma empresa global, multinacional gigante, uma verdadeira luta de Davi contra Golias. As pessoas ficam muito receosas, sem saber como resolver e traz uma sensação de revolta sendo tratado como criminoso. A comunidade e a família passam a saber do processo, as pessoas ficam com inúmeras sensações, além do nome ficar sujo, tem ficha criminal, não arruma emprego, não pode prestar concurso.” Resume a advogada da JNT.

Para ela, esse cenário intimidador organizado pela Vale vai minando a participação das pessoas em grupos sociais de reinvindicação de seus direitos.

“Sendo exitoso ou não para a empresa o desfecho dos processos, as pessoas já enfadam só pela sujeição que passaram e se afastam dos métodos coletivos de manifestações, se era uma liderança de uma associação se afasta do cargo, se era conselheiro tutelar de uma região se afasta do cargo. Portanto, traz constrangimento, medo, adoecimento e arrefecimento da luta”, conclui Fernanda.

 

 

Movimento pela Soberania Popular na Mineração