Este cinco de novembro de 2020 marca os cinco anos do crime da Vale, Samarco e BHP Billiton, com o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG). Há quem insista em chamar de tragédia o que aconteceu naquele ano. Mas basta um olhar mais atento à condução das mineradoras envolvidas neste processo, e toda a luta entre sociedade civil, movimentos populares e diversas entidades para escancarar um desrespeito da condição humana que é cíclico, nunca parou e parece não ter fim. Os únicos a aprenderem com o crime foram as empresas responsáveis. De lá para cá, o que nós vimos foi o afrouxamento das licenças ambientais para a execução da atividade mineradora, um Estado conivente com a sede de lucro dessas empresas e o que era mais temido a nível de perdas irreparáveis: outro rompimento de barragem no Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), em janeiro de 2019.

São mais de 2.000 municípios no Brasil com atividade mineral e um dos maiores gargalos é a falta de fiscalização de todo esse processo – seja ele de licenciamento, fiscalização, destinação dos rejeitos e do impacto na vida das comunidades atingidas por essa atividade. Para analisar o atual contexto da mineração e, mais especificamente, o que ocorre no estado de Minas Gerais, conversamos com o professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Tádzio Coelho, que também é pesquisador do PoEMAS (Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade). #5anosdeInjustiça #RioDoceemLuta

A MINERAÇÃO NA DINÂMICA BRASILEIRA

Falar de mineração no Brasil é falar de um modelo específico, caracterizado sociologicamente como um conjunto de estruturas políticas, sociais, econômicas e institucionais que o formam. Esse modelo tem ligações com o mercado global de commodities, por isso não é caracterizado apenas como uma situação endógena do país – ele tem relações com a dinâmica internacional, dos preços e flutuações de mercado dos minerais.

Podemos compreender que existe um conjunto de estruturas que regulam e formam a atividade mineradora no Brasil, ou seja, não é apenas uma atividade econômica ou a aplicação de uma técnica produtiva para a extração de minerais e tecnologias, é uma estrutura determinada por relações sociais, políticas, entre grupos e classes sociais.

Além disso, é importantíssimo lembrar as escalas crescentes da extração mineral no Brasil. A reprimarização das exportações, a desindustrialização, o espaço crescente ocupado pela mineração na economia nacional e na estadual de MG e de outros estados são, na verdade, os efeitos e características dessa expansão da mineração no país. Junto com essa expansão, obviamente, tem também um incremento da produção mineral, que obviamente também está atada e acaba gerando mais rejeitos ainda e a maior necessidade de infraestruturas para deposição desses rejeitos.

AUTOMONITORAMENTO DAS MINERADORAS E SUCATEAMENTO DA ANM 

Dessa forma, como principais pontos desse conjunto de estruturas temos a falta de monitoramento das infra estruturas de mineração no país, a mais conhecida e mais trágica é a questão das barragens de rejeito, que tem como principal fiscalizador a Agência Nacional de Mineração (ANM) que, na prática, não tem recursos nem pessoal para realizar essa atividade fiscalizatória de maneira satisfatória.

Agora na pandemia da covid-19, por exemplo, havia apenas quatro técnicos de barragem para fazer o monitoramento em todo o estado de Minas Gerais, sendo que existem centenas de barragens só nesta região e dezenas delas sem declaração de estabilidade.

Na prática, o que ocorre é um auto monitoramento feito pelas próprias empresas, que fornecem os dados à ANM. Esses contratos são de empresas terceirizadas, o que leva a um gigantesco conflito de interesses, pois essas empresas tendem a não concluir algo que seja contra o interesse das mineradoras.

LICENCIAMENTO ENVIESADO, ACELERADO E FLEXIBILIZADO

No geral, em momento algum os processos de licenciamento ambiental colocam como possibilidade a negação da licença às mineradoras – o que torna o processo de licenciamento mais uma etapa burocrática para a instalação dos projetos de mineração do que propriamente avaliativo qualitativamente. Além disso, as várias instâncias legislativas vêm criando modalidades alternativas de licenciamento para acelerar e flexibilizar o processo.

Como exemplo temos o caso de MG, em que foi criado o licenciamento ambiental simplificado. Dependendo de certos critérios, um projeto pode entrar dentro do licenciamento ambiental concomitante, ou seja, ele não passa pelas três fases do licenciamento (o prévio, o de instalação e o de operação), caso o projeto minerador não seja entendido como ‘altamente danoso’. Temos exemplos da Zona da Mata Mineração que foram licenciadas por essa modalidade.

O que é importante de observar é que os impactos e efeitos são muito parecidos entre projetos licenciados nessa nova modalidade e naqueles entendidos como altamente impactantes e danosos, ou seja, não existe isso de pequena mineração, as comunidades continuam a sofrer os efeitos desses projetos licenciados concomitantemente, assim como os que passam pelo processo trifásico. Em Teixeiras e Pedra do Anta, por exemplo, comunidades inteiras sofrem com as explosões para desmonte de rocha que ocorrem na área da mina, causando rachaduras nas casas e problemas de saúde, inclusive, mental. 

Vale explicar que essa possibilidade da criação de um novo tipo de licenciamento ambiental simplificado foi criada através da Deliberação Normativa número 217 de 2017 No estado de MG. Isso possibilitou, portanto, que as empresas mineradoras consigam evitar muitas vezes o licenciamento ambiental trifásico da LP, LI, LO e etc. utilizando esse licenciamento ambiental concomitante, o que acaba acelerando a aprovação desses projetos de mineração.

PARTICIPAÇÃO EMPRESARIAL NOS PROCESSOS DECISÓRIOS

Outra questão ligada ao modelo de mineração, ainda pensando no ponto do licenciamento, é a excessiva representação dos interesses das empresas nos Conselhos e Órgãos de decisão. Geralmente esses conselhos têm a composição tripartite, em que se divide o conselho em sociedade civil, empresas e estado. No entanto, em geral, o estado atua votando e atuando a favor dos interesses empresariais e muitas das organizações da sociedade civil atuam da mesma forma, fazendo com que os interesses e as demandas das empresas de mineração sejam centralizadas dentro desse processo decisório. 

DINÂMICA DAS CONDICIONANTES

Outra forma de se acelerar a aprovação dos licenciamentos de mineração é a partir da dinâmica das condicionantes. Essa dinâmica é uma forma dos projetos que foram aprovados, ao mesmo tempo em que estejam em funcionamento, em tese, deveriam ter certas medidas adotadas pelas mineradoras. Ou seja, para que a extração mineral continue sendo realizada, as empresas deveriam atender a condicionantes ligadas à danos causados pelo projeto, às comunidades, ao meio ambiente.

No entanto, o que a gente vê é que expansão pós expansão, licenciamento pós licenciamento, essas condicionantes não são atendidas, fazendo com que sejam apenas outro marco burocrático dentro do licenciamento. A gente pode ver isso de maneira evidente no caso da Anglo American atuando em Conceição do Mato Dentro (MG): são centenas as condicionantes que foram colocadas para o projeto, desde a aprovação de sua instalação e licenciamento da expansão da mina e barragem de rejeitos, que não foram atendidas ao longo do tempo.

BARRAGENS DE REJEITOS E OUTRAS PROBLEMÁTICAS

Existe uma série de variáveis que acabam determinando o crescimento no volume de rejeitos gerados pela atividade mineradora. Uma delas é o decréscimo do teor de pureza dos minérios – quanto menor esse teor de pureza, maior a tendência à geração de rejeitos.

Esses minérios, principalmente o de ferro (no caso de MG) vêm apresentando uma diminuição no teor e portanto uma maior geração de rejeitos, e isso é algo estrutural da mineração nesta região. Além disso, o que percebemos são opções tecnológicas que optam pelo beneficiamento dos minérios por via úmida, portanto com aplicação de água no beneficiamento dos minérios.

Isso acontece porque essas mineradoras tem uma série de benefícios e vantagens na utilização da água. Além disso tem a questão das barragens – os métodos de construção (para montante, para jusante), que são sempre pensados através de critérios econômicos, de custos de produção e manutenção. Tudo isso acaba sendo uma estrutura que gera rejeitos, barragens, mortes, desastres e crimes.

No entanto, sempre que a gente fala da atividade mineradora, é importante lembrar que existe uma diversidade muito grande de infraestruturas de mineração, que também geram muitos problemas, danos e efeitos sobre as comunidades, as populações. A gente sempre lembra das barragens de rejeito, por questões óbvias, pelas mortes, pelos crimes cometidos pelas mineradoras, mas são várias outras infra estruturas que causam problemas.

Um exemplo são as pilhas de estéril, material separado antes de se aplicar a água e fazer o beneficiamento do minério por via úmida. Essas pilhas de estéril, obviamente, em contato com a água, acabam sendo carreadas, causando sérios problemas para a dinâmica hídrica dessas regiões, contaminando rios, cursos d’águas e, além disso, existe o problema dos desmoronamentos como o que a gente viu em 2018 no Maranhão, com a mina da Equinox.

Essas pilhas de estéril também acabam levando essa poeira para as comunidades e isso causa uma série de problemas de doenças oftalmológicas, respiratórias, dermatológicas, enfim. Então a emissão de poeira é incrementada também pela presença dessas pilhas de estéril. Isso é um problema que é muito pouco debatido aqui no Brasil. Além disso, nós temos a questão dos minerodutos, das ferrovias, dos portos, enfim, uma diversidade muito grande de infra estruturas que causam problemas para a população além das barragens de rejeito.

O MERCADO FINANCEIRO E A MINERAÇÃO

Esse modelo de mineração não é algo exclusivamente endógeno. Ele tem relações diretas com o que ocorre nos mercados globais, de matérias primas, por exemplo nas negociações dos agentes financeiros nos mercados, nas bolsas de valores de Toronto, Londres, China, que acabam afetando o que ocorre nas relações das sociedades que vivem com a atividade da mineração.

A gente percebe uma instabilidade muito grande na formação desses preços, a volatilidade e a formação de ciclos de alta e baixa nos preços das commodities. Isso acaba afetando a vida das pessoas que vivem não só onde tem extração mineral mas, também, as que são afetadas pelo transporte e beneficiamento dessas matérias primas.

O que se percebe é o papel cada vez mais central dos mercados financeiros na orientação na atividade de mineração. Essas empresas estão centralmente pautadas nos interesses de seus acionistas, Nas negociação das bolsas de valores, e isso acaba afetando a vida das pessoas.

O que a gente percebe é a formação de um conjunto de relações entre grupos, países, que são relações de subordinação, de poder, envolvendo escalas locais, estaduais, nacionais e a escala global. Dentro dessa rede de relações sociais existem aqueles grupos que acabam sendo os mais poderosos, os priorizados dentro das negociações, que tem seus interesses centralizados nos processos políticos e existem aqueles grupos que acabam sendo colocados de lado, então há assimetrias nas relações envolvendo a mineração.

SUCATEAMENTO DA AGÊNCIA NACIONAL DE MINERAÇÃO

É importante lembrar a situação da ANM no que diz respeito à uma de suas atribuições, que é a fiscalização e o monitoramento das barragens. O que percebemos é a continuidade de um projeto de sucateamento desse órgão. A mudança do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) para a agência reguladora não acarretou um aumento de recursos de repasse de verbas para a agência.

O corte orçamentário previsto pela LOA também é preocupante: a previsão é que em 2021 o repasse seja de R$ 61,4 milhões, uma diminuição orçamentária de 9% com relação ao presente ano. Isso porque, de acordo com a lei, 7% da CFEM (Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais), que deveria ser passada para a ANM, só em 2019 foi de R$ 313 milhões, e nem a metade chegou à agência.

Isso vem ocorrendo ao longo dos anos, não é algo exclusivo desse momento. Esse recurso acaba ficando com o Tesouro Nacional e  atendendo a outras demandas do governo federal e do próprio Tesouro. Mas o fato é que a ANM não tem acesso a essa verba, a gente percebe que o sucateamento desse órgão é algo deliberado ao longo dos anos. É um projeto, e isso é algo fundamental para a falta de fiscalização e monitoramento, inclusive na falta de fiscalização do pagamento da CFEM, que acaba sendo feito pelas próprias empresas.