Do Ceará para o Brasil: sementes da soberania popular rumo ao II Encontro Nacional do MAM

Por: Mayra Souza

Entre os dias 17 e 25 de abril de 2025, o estado do Ceará foi cenário de encontros que conectaram arte, política e território, em uma mobilização popular marcada pela potência criativa e pela resistência coletiva. Fortaleza foi o ponto de encontro de duas importantes atividades articuladas pelo Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM): o I Seminário Nacional “Emergência Climática, Transição Energética e o Lítio no Brasil” e a Escola de Arte e Cultura Patativa do Assaré. Ambas integram a jornada de construção do II Encontro Nacional do MAM,agendado para agosto de 2025, que também acontecerá na capital cearense, e expressam a força dos territórios que, diante das ameaças da mineração predatória, seguem afirmando outras formas de existir e lutar.

O pontapé inicial da mobilização foi dado no dia 17 de abril com o I Seminário Nacional “Emergência Climática, Transição Energética e o Lítio no Brasil”, realizado no auditório da ADUFC. O evento reuniu pesquisadores, dirigentes de movimentos sociais, representantes de entidades sindicais e ativistas da ecologia política para refletir criticamente sobre o papel dos minerais estratégicos na atual conjuntura geopolítica, especialmente diante da chamada “transição energética” – termo que, embora amplamente difundido, tem servido de escudo para novas formas de expropriação e violência nos territórios.

Atividade reuniu mais de 100 participantes de 11 estados. Foto: Jerê Santos

Na mesa de abertura, Pedro D’Andrea, da direção nacional do MAM, pontuou:

“Nós temos feito um esforço de entender a disputa geopolítica a partir do espaço que está sob nossos pés, por isso a necessidade de virar o mapa de cabeça pra baixo.”, reafirmando a centralidade dos territórios na construção de alternativas populares e no enfrentamento aos modelos impostos pelo capital internacional.

Injustiça hídrica e resistência no semiárido

O Ceará, marcado por sua pluralidade cultural e histórica, carrega também contradições profundas. A presença de megaprojetos de mineração, especialmente em áreas de comunidades tradicionais e regiões de preservação ambiental, acirra os conflitos socioambientais e exige articulação popular para defender os modos de vida ameaçados. Nas últimas duas décadas, o estado vivenciou um crescimento acelerado de processos minerários, sobrepostos a territórios diversos e profundamente marcados por modos de vida tradicionais. 

Essa expansão transformou o estado em campo de disputa entre o capital mineral e comunidades que resistem à destruição de seus territórios. Atualmente, centenas de áreas estão em conflito com a mineração — e os impactos se manifestam muito antes da primeira lavra. Já nas etapas iniciais, empresas atuam com estratégias de intimidação e narrativas falsas que vendem a mineração como progresso, desvalorizando a vida, a cultura e a autonomia dos povos locais. 

Essa ofensiva, disfarçada de desenvolvimento, ignora o direito das comunidades de dizer “não” e defender suas águas, terras, crenças e formas de viver. Além disso, o setor mineral lidera os conflitos por água no país: só em 2019, mais de 40% dos casos registrados no Brasil foram causados por mineradoras, com destaque para a região Nordeste, como aponta a publicação O Problema Mineral no Ceará.

No Ceará, o modelo mineral avança com sede crescente, ambicionando autorizações para explorar recursos hídricos em um cenário já marcado pela escassez. Comunidades organizadas em diferentes regiões do estado reivindicam o direito de existir sem mineração, lutando não apenas por sobrevivência, mas por dignidade, soberania e justiça ambiental. O projeto de extração de urânio e fosfato em Santa Quitéria (CE) prevê o uso de 855 mil litros de água por hora — cerca de 600 milhões por mês — e preocupa especialistas pelos impactos no abastecimento local, representando um grave risco de injustiça hídrica e violação da soberania das comunidades.

Arte e Cultura

No dia 18 de abril, teve início a Escola Nacional de Arte e Cultura Patativa do Assaré — uma proposta formativa construída pelo Coletivo Nacional de Juventude do MAM – Ravel Marques, com o objetivo de fortalecer os estados, resgatar a memória cultural popular e preparar as expressões simbólicas da luta para o II Encontro Nacional. Reunindo participantes de 11 estados do país, a escola foi marcada por vivências, oficinas criativas e diálogos sobre a relação entre arte, política e território. 

A abertura foi celebrada com mística vibrante de música, poesia e apresentação dos participantes. Em seguida, mesas e rodas de conversa aprofundaram reflexões sobre o papel da juventude na luta pela soberania popular. Para Elane Barros, militante do Coletivo Nacional de Juventude do MAM:

“Essa escola representa um marco na construção da soberania popular a partir da arte e da cultura, e no enfrentamento aos projetos que ameaçam a vida, os sonhos e o futuro.”

Oficina de Teatro, ministrada por Lucilano Albuquerque – pesquisador, dramaturgo, roteirista, diretor e encenador de Teatro e Cinema e por Raika Queiroz – produtora cultural, pesquisadora, atriz e coordenadora do Ponto de Cultura Carcará. Foto: Jerê Santos

A programação incluiu oficinas de teatro, cordel, xilogravura, fotografia, audiovisual, música e criação de estandartes, faixas e alegorias. Mais que técnicas, os momentos foram espaços de construção coletiva de identidade e afirmação estética da luta. Para Adrielly Regis, enfermeira popular e coordenadora político-pedagógica da escola:

“A gente entende que a arte e cultura, tem um papel político a ser cumprido, e daqui até agosto a ideia que essa juventude, que está aqui presente, de 11 estados do Brasil retornem para os seus territórios e experimentem, nas comunidades, no trabalho de base, na mobilização, as diversas linguagens artísticas, a partir da educação popular, para mobilizar para o nosso segundo Encontro Nacional.”

Fotografia e audiovisual como trincheiras populares

“A fotografia precisa ser vista como capaz de subverter discursos hegemônicos. Com a perspectiva popular, podemos compreendê-la como uma ferramenta de luta. Sua importância está no potencial de tecer narrativas, denúncias, ideias e identidades que são fundamentais para a luta social.” 

Essa foi a perspectiva trabalhada na oficina de fotografia ministrada por Jeremias Santos, fotógrafo e mestre em educação e cultura, onde o olhar popular sobre o território foi apresentado como uma poderosa ferramenta de resistência.

Atividades práticas da oficina. Foto: Jerê Santos

Na oficina de audiovisual, conduzida por Erick Vasconcelos — comunicador popular e integrante do Coletivo Nacional de Comunicação — e por Mayra Souza, comunicadora popular, artista gráfica e também integrante do coletivo, os participantes foram provocados a refletir sobre o papel das imagens na disputa de sentidos e na denúncia contra o modelo de exploração mineral. 

Mais do que ensinar técnicas, a oficina reafirmou a comunicação como um ato político e pedagógico. Com base no método freiriano, a proposta se construiu a partir das realidades vividas nos territórios impactados pela mineração, priorizando a escuta ativa, o diálogo horizontal e a criação coletiva de narrativas.

“A oficina de audiovisual é mais do que troca de técnicas, é uma vivência potente de expressão coletiva. Cada imagem é uma forma de contar o que somos, sentir o território e resistir com arte. Porque quem não conhece sua cultura, não conhece sua história”, afirmou Erick.

Oficina de Audiovisual – Comunicação Popular. Foto: Hévili Martins

Para além de apenas registrar, a comunicação popular propõe transformar. Em um país atravessado por violências geradas pelo modelo mineral – que impõe expulsões, contaminação ambiental e destruição cultural em diversos estados –, disputar narrativas foi uma tarefa urgente.

“Se por um lado temos os meios de comunicação a serviço do capital e pautados pelo interesse hegemônico e centralizador da exploração, do nosso lado forjamos a força da comunicação popular, com participação horizontal, crítica e munida dos modos de vida e da cultura dos territórios, comunidades e vivências. Essa é a batalha das ideias e dos corações”, destacou Mayra.

Construindo o futuro com arte e coragem

O nome da escola é também símbolo de resistência e beleza: Patativa do Assaré, poeta popular cearense, representa a voz do povo do sertão e inspira a luta por um Brasil soberano, justo e enraizado em sua cultura. Patativa do Assaré agora é Patrono da Cultura Popular do Ceará. A Assembleia Legislativa do estado aprovou em 23 de abril, o Projeto de Lei que reconhece com o título o poeta popular Antônio Gonçalves da Silva, natural do município cearense de Assaré.

O texto do projeto destaca que Patativa foi um “gigante da cultura popular nordestina” como poeta, compositor, cantor e improvisador; e que “sua poesia, rica em metáforas e linguagem coloquial, abordava desde a seca e a pobreza até o amor, a fé e a esperança do povo sertanejo. Patativa também era um mestre da improvisação, capaz de tecer versos instantâneos sobre qualquer tema”.

Oficina de Música, ministrada pela artista, mensageira xamã da espiritualidade cantada Ondó Mainumy Beijaflô de Mãe Preta Muzunguê CoMPaZ – especialista em Técnica em Canto Popular, compositora e instrumentista. Foto: Mauricio Carlos

Durante a Escola que leva seu nome, o ateliê de produção artística foi espaço de criação coletiva e afirmação simbólica da luta. Carlos Mulleke, militante da Frente Brasil Popular, destacou a potência do processo:

“Rolou muita troca em coletivo para construirmos os estandartes, faixas e tudo que compõe nossa identidade na luta. Mas mais do que isso, a arte tem um papel essencial na transformação da sociedade. O ateliê mostra que qualquer pessoa tem lugar na luta — seja através da arte ou da cultura — e traz a leveza das cores e das formas pra essa disputa tão árdua.”

Oficineiros puderam explorar a poesia rimada do cordel e a força visual da xilogravura, dando vida a narrativas potentes, autorais e cheias de denúncias à mineração nos territórios. Foto: Jerê Santos

Do papel à madeira, da rima à imagem — a oficina de cordel e xilogravura foi um mergulho criativo nas tradições populares brasileiras. Sob a orientação de Carlos Henrique, xilogravurista do Cariri, e Erivan Silva, militante do MAM no Ceará e cordelista, os participantes entrelaçaram poesia e imagem para narrar as lutas de seus territórios. A partir da poesia rimada do cordel e da força expressiva da gravura em madeira, surgiram criações autorais que denunciam os impactos da mineração, valorizam as culturas locais e reafirmam a arte como instrumento de resistência popular. Entre estrofes e entalhes, o que se viu foi a força do povo transformando denúncia em beleza e memória em luta.

Como reforça Erivan Silva, da direção nacional do MAM no CE:

“O cordel é a arte em poesia, no ritmo da dança e no batuque dos dedos no pandeiro. É a força da cultura popular capaz de transmitir a realidade e seus valores enquanto resistências. Portanto, sua importância vai desde a interpretação da vida cotidiana em prosas e versos, capaz de chegar aos ouvidos do povo, até ressoar e/ou incomodar a literatura acadêmica que escreve em grande parte para promover os seus egos.”

Para Carlos Henrique: “A xilogravura é uma forma de expressar o que vivemos, contar nossas histórias e falar da luta do povo nordestino. Ela é acessível, direta e carrega beleza e força ao mesmo tempo. Ensinar essa técnica na escola é fortalecer nossa arte e nossa identidade”.

A oficina proporcionou aos participantes contato com a técnica e sua história, incentivando a produção de obras que expressam as contradições e riquezas dos territórios. Assim como Patativa usava a palavra como arma, a xilogravura reafirma que também a imagem pode ser trincheira. As atividades realizadas no Ceará em abril são parte de um processo de formação e mobilização nacional que culminará no II Encontro Nacional do MAM, em agosto de 2025, em Fortaleza. Até lá, as juventudes formadas retornarão aos seus estados com o desafio de mobilizar suas comunidades, construir processos artísticos e políticos enraizados em seus territórios e fortalecer as redes de resistência popular.

 

 

Movimento pela Soberania Popular na Mineração