Por Mayra Souza

Espaço de saúde reafirmou o cuidado como prática política diante dos impactos da mineração nos territórios

 

Montada no 2º Encontro Nacional do MAM, realizado em Fortaleza (CE) entre os dias 24 e 28 de agosto, a Tenda Dona Chica foi um espaço de cuidado e partilha dentro da programação que reuniu cerca de 1.500 militantes de 12 estados brasileiros. Criada para integrar saúde, espiritualidade e luta social, a tenda simbolizou o compromisso do movimento com o cuidado como prática de resistência e organização popular.

Em diferentes territórios de luta, os movimentos sociais têm criado espaços de saúde popular como forma de resistência e cuidado coletivo. Esses espaços se constituem não apenas como alternativas à mercantilização da saúde, mas também como lugares de encontro entre saberes ancestrais, práticas comunitárias e terapias integrativas que fortalecem a vida.

A medicina tradicional, transmitida de geração em geração, ocupa lugar central nesses espaços. O uso de plantas medicinais em chás, xaropes, banhos e emplastros, assim como os benzimentos, as rezas e o trabalho das parteiras, traduzem uma visão de saúde que vai além do corpo físico, abrangendo espírito, natureza e comunidade. Essa herança, guardada por povos indígenas, afrodescendentes, camponeses e ribeirinhos, revela um cuidado que nasce do vínculo com a terra e da escuta sensível dos ciclos da vida.

Foto: Keila Rodrigues


Em muitos territórios impactados pela mineração, os saberes populares têm se reafirmado como formas de defesa e reconexão com o território. Frente às violações impostas pelo modelo de exploração mineral predatório — que rompe vínculos, contamina rios e ameaça modos de vida —, as comunidades têm resgatado práticas tradicionais de cuidado como forma de proteger a vida e reconstruir o pertencimento. O uso de ervas medicinais, rezas, benzimentos, banhos e mutirões de cura coletiva revela uma sabedoria ancestral que une corpo, natureza e espiritualidade. Nesses espaços, cuidar é resistir, e cada gesto de cura se transforma em ato político de reexistência, memória e retomada do território.

Somadas a essas práticas, as terapias integrativas — como acupuntura, massoterapia, meditação e fitoterapia — vêm sendo incorporadas de forma criativa, dialogando com as políticas públicas de Práticas Integrativas e Complementares. Nesses espaços, o uso de óleos essenciais em massagens, compressas ou aromaterapia, bem como a partilha de chás e infusões durante os encontros, têm se tornado formas de fortalecer corpo e emocional, acolhendo as pessoas em momentos de desgaste físico ou mental.

Esses saberes tradicionais e integrativos não se limitam ao cuidado individual. Eles assumem também dimensão política e social: contribuem para a soberania alimentar, estimulam a agroecologia, inspiram farmácias vivas e hortas comunitárias, e transformam cada gesto de cura em afirmação de autonomia e dignidade. Em encontros, feiras agroecológicas ou mutirões, é comum ver tendas de saúde popular oferecendo massagens, banhos de ervas, rodas de conversa, uso de óleos e ervas aromáticas, criando um ambiente de acolhimento que devolve energia e sentido à militância.

Foto: Emerson Monteiro

Saúde coletiva como forma de resistência

Para Adrielly Régis, militante do MAM, enfermeira popular e mestranda do Curso de Mestrado Profissional em Trabalho, Saúde, Ambiente e Movimentos Sociais da ENSP/Fiocruz, o cuidado em saúde dentro dos movimentos populares é parte essencial da luta coletiva.

“O sentido de existência dos movimentos sociais é a organização coletiva — sem coletivo, não há movimento”, afirma. Segundo Adrielly, a Tenda Popular de Saúde não reproduz o modelo tradicional das equipes de saúde, marcadas por hierarquias e funções rígidas. “Em nossos espaços, a atuação em equipe é, sobretudo, a engrenagem necessária para alcançar o objetivo de promover o cuidado”, explica.

Foto: Keila Rodrigues

Durante o II Encontro Nacional do MAM, essa prática se concretizou na construção da Tenda Popular de Saúde Dona Chica, onde diferentes sujeitos contribuíram com seus saberes e práticas.

“Cuidar não é tarefa de poucos, e o saber em saúde não é um patrimônio adquirido apenas na formação acadêmica. É, antes de tudo, o encontro com princípios e valores coletivos como solidariedade, companheirismo e compromisso com uma causa comum”, reforça.

O cuidado foi potencializado justamente pela diversidade de conhecimentos trazidos dos territórios. Cada participante colocou à disposição suas experiências e práticas durante os quatro dias do Encontro, fortalecendo a militância e acolhendo especialmente aqueles e aquelas sobrecarregadas nas tarefas de bastidores — cuidando de quem cuida da luta.

Desafios, aprendizados e saúde como ato político

Entre os maiores desafios, Adrielly destaca a necessidade de desierarquizar os saberes acadêmicos em relação aos saberes populares — uma hierarquia imposta pela lógica do capital, que transforma o cuidado em mercadoria e deslegitima as práticas tradicionais dos povos. “O maior aprendizado é perceber na prática a potência da concomitância desses conhecimentos. Eles são complementares, e não opostos, como muitas vezes nos fazem crer”, afirma. A Tenda Popular de Saúde, nesse sentido, se torna um espaço onde ciência e tradição caminham juntas, valorizando a pluralidade dos modos de cuidar.

Foto: Lua Carvalho

A enfermeira popular reforça que afirmar a saúde como ato político é compreender que ela é bandeira de todas as causas.

“Ninguém consegue lutar por moradia, educação, soberania popular ou contra as opressões se estiver adoecido”, diz.

Promover saúde nos espaços de militância é garantir sustentação física e emocional para que o povo possa estudar, debater e agir para transformar a realidade. Em tempos de crise, o adoecimento é usado como arma pelos inimigos da classe trabalhadora. “O adoecimento nos paralisa, e o sistema segue se reproduzindo”, alerta. Por isso, Adrielly defende que os movimentos sociais assumam a tarefa de proteger e fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS), incidindo sobre ele para que atenda de fato às necessidades do povo em cada território.

Práticas populares, bem viver e mineração

As práticas populares de cuidado, como o uso de plantas medicinais, chás, óleos essenciais e terapias integrativas, são, segundo Adrielly, instrumentos de resistência política. “Essas práticas sempre foram contra-hegemônicas, pois atuam na promoção e prevenção do adoecimento tendo como princípio a defesa da vida e não o lucro”, explica. Muitos desses saberes, preservados por gerações, têm alto potencial terapêutico e são acessíveis, demandando poucos recursos e tecnologias simples. “É preciso que os movimentos sociais atuem no resgate e valorização dessas práticas, contribuindo para sua proteção e democratização como parte dos nossos métodos de luta”, defende.

Foto: Emerson Monteiro

Para ela, a saúde popular está diretamente conectada à soberania alimentar, à agroecologia e ao bem viver. Todas essas bandeiras convergem na necessidade de um projeto alternativo de sociedade.

“Não haverá modo de produção agroecológico, soberania alimentar, direito à saúde e bem viver sob o capitalismo. A construção de um Projeto Popular, que altere radicalmente a forma como a sociedade se organiza, é o que conecta todas essas lutas”, afirma.

Adrielly também chama atenção para os graves impactos da mineração na saúde das comunidades. Entre os efeitos mais recorrentes estão o aumento de distúrbios depressivos e de ansiedade, o uso de álcool e outras drogas diante da ameaça de desterritorialização e precarização da vida, além das mudanças culturais impostas pela chegada de trabalhadores de outras regiões. As violências de gênero também crescem nesses contextos, com maior incidência de abuso sexual, prostituição, gravidez precoce e sobrecarga sobre as mulheres.

Na dimensão física, os impactos são igualmente severos: contaminação da água, do solo e do ar; problemas respiratórios causados pela poeira; infecções de pele; aumento de casos de câncer e acidentes nas estradas com o alto fluxo de caminhões. “Os riscos de acidentes de trabalho também aumentam, especialmente entre os homens empregados em condições precárias, inseguras e com jornadas exaustivas nas mineradoras”, conclui.

Dona Chica: o cuidado como legado

O nome da tenda é uma homenagem à parteira, benzedeira, conhecedora das ervas medicinais e militante do SUS, Francisca Pereira da Silva, conhecida como Dona Chica. Maranhense de 81 anos, residente em Cristinápolis (SE), ela era indígena Ka’apor, mãe de santo, rezadeira, integrante do Movimento Popular de Saúde (MOPS) e assentada da reforma agrária. Decorada com elementos que remetem à sua identidade e à natureza, a Tenda convidou os participantes às apresentações culturais e debates sobre a importância dos saberes tradicionais na saúde coletiva e no fortalecimento do SUS.

Foto: Hevili Martins

Dona Chica simboliza o que o Sistema Único de Saúde aspira: um sistema integral, que respeita a diversidade cultural e acolhe as práticas de cuidado que transcendem o convencional. A homenagem deste ano traz um recado claro: o futuro da Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde no Brasil precisa ser construído com a inclusão de saberes e cuidados que vão muito além do que é ensinado nas escolas e universidades.

Saúde e agroecologia: o cuidado com a vida

Pensar a saúde no MAM é considerar o ser humano em sua forma integral de relação com o meio, com a produção e com a coletividade. “Enquanto movimento, seguimos construindo a agroecologia e a produção de alimentos saudáveis, cultivando a vida, combatendo o uso de agrotóxicos e a monocultura voltada ao acúmulo de commodities do capital explorador. Praticar e defender a agroecologia é defender a vida”, afirma Adrielly.

Foto: Emerson Monteiro

Ela destaca que o cuidado não se limita à doença: é também construção de uma sociedade menos opressora.

“O cuidado é com o corpo físico, a mente, a sociedade e o modo de viver. É o cuidado consigo, com o outro, no coletivo e com a natureza. Ele deve ser feito para produzir alimento e vida. Para quem está no campo, a mudança no jeito de produzir na terra é fundamental. Em um assentamento ou acampamento, a agroecologia é libertadora para a mulher e para a família. A agroecologia trabalha as mudanças na relação com a terra, tratando-a como ser vivo.”

Juventude e formação popular em defesa do SUS

Jefferson Santos dos Anjos, morador de Planaltina (DF), educador do Programa Agentes Populares de Saúde (AgPopSUS Juventudes) e educando do Programa Nacional de Formação de Agentes Educadores e Educadoras Populares de Saúde (AgPopSUS), também compartilha como a vivência na Tenda Popular de Saúde Dona Chica marcou sua trajetória.

“Foi um momento único que levarei para toda a minha vida, tanto pela formação quanto pela vivência territorial. Participei da equipe de saúde no Espaço Dona Chica, junto com médicos, agentes de saúde e enfermeiros, mostrando para as pessoas que não existe só o uso de remédios — mas também métodos e práticas integrativas como massoterapia, escalda-pés, auriculoterapia e ventosaterapia”, conta.

Para Jefferson, o Encontro Nacional em Fortaleza foi mais do que uma atividade formativa: foi um espaço de prática política e coletiva do cuidado. “Esses espaços têm muita importância por mostrar que existem outros métodos e práticas integrativas relacionadas à saúde e à prevenção”, afirma. Ele acredita que aproximar a população dessas práticas é uma forma de educação em saúde e fortalecimento da autonomia popular nos territórios.

Foto: Keila Rodrigues

Ao refletir sobre a relação entre saúde e política, Jefferson reforça: “O direito à saúde está ligado à prevenção e à promoção do cuidado. É fundamental que todos conheçam seus direitos e deveres enquanto cidadãos”. A formação política, nesse contexto, é vista como ferramenta para transformar o acesso à saúde em um direito efetivo, e não apenas formal.

“O conhecimento é o primeiro passo para que as pessoas compreendam que saúde é um direito e que a luta por ela faz parte da luta por uma sociedade mais justa”, completa Jefferson.

Com o objetivo de fortalecer a participação popular em saúde e incentivar a ação da sociedade civil em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS), o Ministério da Saúde lançou o Programa de Formação de Agentes Educadores e Educadoras Populares de Saúde (AgPopSUS), que deve formar 11 mil agentes até o final de 2025. A iniciativa busca resgatar e fortalecer os saberes populares, demarcando a educação popular como método prático de formação e cuidado, em parceria com movimentos sociais populares.

A Tenda Dona Chica sintetiza o espírito do II Encontro Nacional do MAM: um espaço onde o cuidado, a ancestralidade e a luta política se encontram para afirmar a vida em todas as suas formas. Ao unir práticas tradicionais, ciência, agroecologia e formação popular, o Movimento pela Soberania Popular na Mineração reafirma que defender a saúde é também defender o território, a natureza e a dignidade do povo. Desde 2019, o MAM, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), desenvolve ações integradas de pesquisa e intervenção em saúde nos territórios afetados pela mineração, por meio do projeto Abordagens sobre o impacto socioambiental da mineração no Brasil. A iniciativa busca identificar e denunciar os efeitos da atividade minerária sobre a saúde coletiva e o meio ambiente, com foco nas populações mais vulnerabilizadas.

 

 

Movimento pela Soberania Popular na Mineração