A luta por soberania nos territórios é a afirmação do direito dos povos de decidirem sobre suas próprias vidas, modos de viver, de plantar, de amar e de resistir. Soberania não é apenas controle sobre a terra — é também pertencimento, memória, cuidado coletivo e autodeterminação. Para as pessoas LGBTI+, existir nesses territórios é também um ato político, pois desafia o modelo dominante que tenta apagar tudo aquilo que não se encaixa.
A violência contra pessoas LGBTI+ se manifesta de diferentes formas: na negação de direitos, na discriminação, na exclusão institucional e social. Muitas vezes, essas vidas são atravessadas por violências naturalizadas — que vão do abandono às agressões físicas —, afetando até mesmo a percepção sobre o que é ou não violência. A mineração, por sua vez, carrega consigo crimes ambientais, devastação e o aumento da vulnerabilidade de povos do campo, das águas, da floresta e de comunidades tradicionais. Diante disso, é preciso perguntar: onde estão as pessoas LGBTI+ nas crises ambientais? Qual o recorte feito para o acolhimento digno de pessoas trans e travestis?
Recentemente, esse debate veio à tona durante os processos de ajuda emergencial e realocação no Rio Grande do Sul. Pessoas trans que perderam suas casas e tudo o que tinham ainda enfrentaram preconceito nos abrigos e dificuldades para acessar serviços públicos. Muitas tiveram seus nomes sociais desrespeitados — nomes pelos quais se identificam e que são um direito legal. O episódio escancarou não apenas a impossibilidade de seguir negando a existência das pessoas LGBTI+, mas também a ausência de políticas de acolhimento dignas em contextos de emergência.
Em entrevista à EBC, Bruna Benevides, presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), relatou que, durante a tragédia no Rio Grande do Sul, pessoas trans enfrentaram barreiras graves para acessar itens básicos como kits de higiene e cestas básicas. “O cenário era alarmante. Em meio à tragédia, pessoas trans estavam sendo impedidas de acessar kits de higiene e cestas básicas, pois as entregas ocorriam em unidades militares, onde sua entrada era vetada”, afirmou. Ela destaca que esse tipo de exclusão evidencia o que chamamos de transfobia ambiental — uma forma de violência que agrava a saúde física e mental dessas populações ao negar, mesmo em situações emergenciais, o acesso a direitos e serviços essenciais.
Nos crimes ambientais, onde estavam as pessoas LGBTI+ em Brumadinho e Mariana? Onde elas ficam nas constantes evacuações forçadas pelas mineradoras? Onde está o lugar seguro diante do terror das barragens? É urgente reconhecer a existência de uma transfobia e LGBTI+fobia ambiental velada, que exclui, apaga e silencia.
Os espaços institucionais e públicos, de modo geral, ainda impõem uma lógica identitarista que reduz a existência das pessoas LGBTI+ a pautas específicas, afastando-as das discussões estruturais. O modelo cisheteronormativo insiste em encaixar essas pessoas em caixas: define que travestis devem falar apenas sobre saúde, HIV ou violência, como se não fossem capazes de discutir temas como o meio ambiente, os impactos da mineração ou a soberania dos territórios.
Por outro lado, a identidade LGBTI+ vivida nos territórios e comunidades é marcada por vínculos afetivos, redes de cuidado e resistências cotidianas que vão muito além das categorias rígidas impostas pelos discursos institucionais. Diferente do identitarismo da pauta — que muitas vezes isola a vivência LGBTI+ em nichos temáticos —, a experiência concreta dessas pessoas está profundamente conectada às lutas por moradia, alimentação, preservação ambiental e enfrentamento às violações de direitos. A afirmação dessa identidade, nesses espaços, não é apenas um gesto de visibilidade: é uma estratégia política que amplia os horizontes do debate e insere corpos dissidentes como protagonistas também nas disputas contra a mineração predatória.
A exclusão social e a negação do pertencimento aos territórios marcam as existências LGBTI+ como cicatrizes abertas nas comunidades que resistem. O agro-hidro-minero-negócio impõe um modelo de exploração colonial e normativo, baseado na monocultura, na destruição ambiental e na acumulação de capital às custas da vida. Esse projeto tenta violentamente padronizar o viver e silenciar vozes dissidentes. A transfobia não atinge apenas pessoas trans e travestis: mulheres cisgênero também são alvo desse controle, especialmente aquelas que não se enquadram nos padrões rígidos de feminilidade impostos pela sociedade. Seja pela forma de se vestir, pelo comportamento ou pela expressão, muitas enfrentam ataques transfóbicos, insultos e exclusão.
Mas as existências LGBTI+ não se curvam. Elas brotam no contrafluxo. São sementes de desvio fértil, floresta viva, insubmissas à lógica do lucro. Carregam em si a força da agroecologia, o pulso da diversidade, a autonomia como prática e o respeito profundo ao tempo da terra. Enquanto o capital impõe cercas, as corpas LGBTI+ desenham horizontes livres. Enquanto o projeto de morte se espalha como lama tóxica, essas existências plantam futuros em solos partilhados — onde cada forma de vida importa, onde a natureza é parente e não recurso. Nossas identidades, afetos e corpos dissidentes não são margem: são parte essencial da resistência.
No Dia Internacional do Orgulho LGBTI+, reafirmamos que soberania é corpo livre em território vivo. A data marca a Rebelião de Stonewall, em 28 de junho de 1969, quando pessoas LGBTI+ — especialmente travestis, mulheres trans, negras, latinas e drag queens — resistiram à violência policial em Nova York e deram início a um movimento global por dignidade e direitos. Hoje, essa chama continua acesa nos territórios: o orgulho é também denúncia, é memória viva e prática de resistência. Porque não há justiça ambiental, social ou política sem corpos dissidentes livres, reconhecidos e com voz ativa na construção de um outro mundo possível.
Movimento pela Soberania Popular na Mineração
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