Série de entrevistas propostas pelo MAM e ICS, vai trazer a amplitude e criticidade da questão climática frente a um debate enviesado pelo mercado.

 

Inauguramos a série de entrevistas, “Que transição energética é essa?” Uma parceria do MAM e Instituto Clima e Sociedade (ICS) objetivando as reflexões, críticas e propostas de especialistas, pesquisadores, indígenas, quilombolas, camponeses e afetados pela mineração no Brasil.

Será divulgada uma entrevista mensal e para inaugurar a nossa série, no mês de maio, temos a crítica elucidativa de Soraya Tupinambá, ativista de Ecologia Política, alertando sobre as falácias de uma transição energética europeia propagada como salvadora, mas com resquícios financeirizados e imposições políticas estrangeiras sobre o Brasil.

Na entrevista, Soraya Tupinambá, apresenta vários exemplos das mudanças climáticas ocorrida no sul e nordeste brasileiro e conclama: “não podemos virar as costas para o debate do clima, não podemos perder de vista que o Brasil é um dos países mais vulneráveis às mudanças climáticas, isso é uma questão existencial para nós”.

Feita a convocação de Soraya Tupinambá, confira a entrevista abaixo.

MAM – Que transição energética é essa?

Soraya Tupinambá: A gente não pode perder de vista o sentido das coisas, essa transição é badalada, repentina, como narrativa, em discurso, em função dessa crise climática. Mas quando a gente vai analisar suas políticas e a sua concretude, ela se afasta de maneira diametralmente oposta do que seria necessário para o enfrentamento ao caos climático que nós já estamos vivendo. Vale lembrar que no Rio Grande do Sul foram quase 500 mil pessoas atingidas e que isso não é recuperável, grande parte dessas pessoas não vão ter suas vidas arranjadas em 5 anos, em 10 anos, pois alguns danos são irreversíveis tanto sociais quanto ecológicos. Teve partes em Porto Alegre, por exemplo, na região de plantio, que o solo foi lavado, que o solo ficou na pedra, não é recuperável em 1, 2, 3 anos.

Assim vai se criando uma massa de refugiados ambientais, desvalidos. Isso é muito grave e a tendência infelizmente é essa. Nós temos que olhar para isso com essa compreensão de gravidade, e ao fazer isso nós fomos olhar transição energética no Brasil. Vamos olhar a matriz energética Brasileira, quando você junta todas as energias, não aquela que vem só pelas linhas de eletricidade, estou falando do uso para transporte, o carvão usado para alimentação, o óleo diesel nos caminhões, o Brasil tem quase 50% da sua matriz renovável, e o mundo 15% mais ou menos. Então quem precisa fazer a transição energética? Quando você olha para a matriz elétrica, que aí sim é a energia que chega pelo sistema integrado nacional, o Brasil tem mais de 80% renovável, juntando as hidrelétricas, eólicas, fotovoltaicas nós chegamos a 83%. Esse não é um problema nacional, e, no entanto, nós compramos esse discurso, portanto a transição energética que está sendo promovida é a europeia.

MAM – Então qual papel relegado para o Brasil nessa transição energética proposta pela Europa?

Soraya Tupinambá: É muito interessante de analisar os determinantes da emissão de CO2 no mundo, e o que são os determinantes da emissão de CO2 no Brasil. Se a eletricidade é um vetor importante para o continente europeu, ela é 6% para o Brasil. O que determina as emissões no Brasil é a mudança no uso do solo é o desmatamento na Amazônia, são as queimadas. E isso não se dá à toa, isso se dá porque a industrialização do continente europeu e do norte global se dá às expensas do sul, e por isso que nós degradamos as nossas florestas, desmatamos, para produzir soja, para sermos campeões de produção de soja e de minério para exportar. Na geopolítica o mundo nos relega o lugar de países extrativistas, e neste exato momento está se projetando um aprofundamento disto. Estamos vendo agora o agronegócio fazendo festa porque a guerra comercial entre Estados Unidos, o resto do mundo e China fundamentalmente tem provocado nichos e possibilidades do avanço do agronegócio. A pauta hoje do agronegócio é mostrar que o biodiesel brasileiro não impacta a segurança alimentar, para expandir a produção de biocombustíveis e sobretudo de combustíveis para aviação. Nós estamos a caminho de aprofundar o caráter extrativista do nosso país, e isso também não é muito diferente do que é projetado para Chile, Argentina e outros países da América Latina.

MAM – Essa transição energética proposta pela Europa é financeirizada?

Soraya Tupinambá: Em relação à transição, por exemplo, a questão da energia eólica: O nordeste brasileiro concentra mais de 80% da produção de eólica nacional, são mais de 10 mil usinas eólicas instaladas no nordeste brasileiro, com a liderança da Bahia, Rio Grande do Norte, Piauí e Ceará, estes são os 4 estados que se destacam. No entanto, essa produção eólica que está acontecendo no nordeste brasileiro, junto às comunidades que perderam seus territórios para a produção dessas eólicas, foi propagada como uma transição que ia baratear custos, no entanto a indústria eólica é uma indústria extremamente financeirizada e agora no Brasil (também acontece no Chile), estamos produzindo mais energia renovável do que o SIN – Sistema Integrado Nacional- é capaz de transportar com segurança e ocorre uma sobre oferta. A energia produzida no nordeste vai para o sudeste e precisa de linhas de transmissão. Um sistema elétrico baseado em renováveis tem que ter um background, uma bateria, um sistema de armazenamento ou de transmissão, ou um sistema estável (como as termelétricas que não são variáveis), as eólicas e solares se caracterizam por terem picos e baixas de produção durante o dia, então essa instabilidade exige do Sistema Integrado Nacional um background que nós não temos.

O que é que isso provoca ao setor eólico? Isto causou um prejuízo de milhões para esse segmento, as fábricas de aerogeradores estão fechando, no que se manifesta como a ruptura de uma bolha especulativa e de um processo extremamente financeirizado. Então longe de atender uma necessidade de substituição das fósseis, as renováveis são um grande negócio em si, mesmo com operadores como o Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES) e Banco do Nordeste impulsionando essas iniciativas, a ponto de nós chegarmos a esse contrassenso de não termos a necessidade nem a condição de utilizar essa energia. Há a necessidade de investimento em linhas de transmissão, que vai impactar a conta do brasileiro, são bilhões de reais necessário para novas linhas de transmissão, para garantir o escoamento dessa energia, dessa sobre oferta no nordeste brasileiro, e quem vai pagar fatura é o brasileiro.

 MAM – Esse tipo de informação está chegando ao povo Brasileiro?

Soraya Tupinambá: Ninguém sabe disso, isso não é um debate nacional, isso não chega nos debates que nós estamos fazendo, mas é relevante porque esse problema não é um problema de uma comunidade que está tendo sua terra, que produzia alimentos, arrendada através de contratos injustos, que já é uma grande causa mas não é só isso, implica que mais na frente nós vamos ter, muito provavelmente, um colapso do sistema energético nacional que já foi referência de boa gestão, mas a partir da sua privatização vive isso.

MAM – E o debate das energias renováveis na América Latina?

Soraya Tupinambá: Publicamos a revista que se chama Vozes Silenciadas, falando sobre as energias renováveis no Brasil, e os problemas que elas promoveram nas comunidades, e foi feito em todo o nordeste brasileiro. Nós lançamos essa revista durante o G20, o G Social, apresentamos aquilo que era um discurso que não aparecia, esse contraponto. Porque era irrefutável a questão da transição energética e da expansão das renováveis. A Central Única dos Trabalhadores, e a Contag, estão mobilizando seus sindicatos porque as terras estão sendo tomados dos trabalhadores. Hoje que há Instruções Normativas do INCRA autorizando a cessão de áreas de assentamentos para a produção de eólicas, então essa discussão já ganhou várias organizações, a sociedade civil brasileira se abriu para fazer esse debate, não mais segmentado, mas vendo repercussões sobre a questão energética, sobre a questão elétrica, faturas, o encarecimento da compra para o consumidor, os impactos ambientais, tudo isso é importante que a gente faça na mesma discussão que a gente não desconecte esse tema.

Sabemos que essa exploração se concentra na América Latina, muito no triângulo do lítio – Bolívia, Chile e Argentina, e temos visto que tem impactos grandiosos, sobretudo em relação à questão da água, a demanda de água. Nós estamos vendo, por exemplo, a abertura dos salares que são ecossistemas únicos no Chile, são áreas com concentração de sais, a água salmourante, eles extraem diretamente o lítio desses ambientes e esses ambientes estão sendo destruídos, com toda uma biodiversidade.

É sempre curioso perceber que, em nome do clima, se promovem os maiores desastres ambientais, em nome do clima hoje a expansão das renováveis destrói e compromete a segurança alimentar no nordeste brasileiro, compromete ecossistemas valiosos como os salares argentinos e chilenos, compromete vidas de povos originários, desloca populações como na Argentina, como no Atacama, como no Brasil no nordeste, em nome do clima se fala em um mercado de carbono que desterritorializa, que expropria áreas na Amazônia. Está virando um grande discurso uma narrativa que oculta o interesse que são outros, e a questão dos minerais estratégicos não é diferente. Estratégico para quem? Estratégico para quê? Temos que nos perguntar. Porque é estratégico projetar o Brasil como exportador de commodities mineral? Por que isso está sendo feito? Estratégico seria se eu tivesse pensando o lítio dentro de uma estratégia nacional de desenvolvimento, de agregação na cadeia de valor, de industrialização. Não é isso que está acontecendo, a produção de bauxita para obter o alumínio não é estratégica no sentido de que estamos associados a uma estratégia nacional de projeção de cadeias de valor, incrementadas com a participação das populações locais como beneficiárias desse processo de desenvolvimento. Não, o estratégico aí, é estratégico para a gente continuar impulsionado a industrialização do norte global, e é importante lembrar que o Brasil tem a Lei Kandir, que faz com que os minérios não paguem o ICMS ao serem exportados, isso é uma forma de subsidiar o minério para outros países, porque quando o setor industrial vai usar o minério no Brasil ele paga ICMS mas para exportação não se paga. Então estratégico para quem? É estratégico para a manutenção do Brasil no seu lugar histórico de produtor de commodities, exportador de commodities minerais.

MAM – E a utilização do chamado hidrogênio verde?

Soraya Tupinambá: Não tendo recursos energéticos, se projeta o hidrogênio verde, que foi destinado para ser produzido em países como o Brasil (nordeste brasileiro), norte africano, Chile, Colômbia, entre outros.  E nós estamos vendo que para a produção do hidrogênio verde você precisa da expansão das renováveis, porque é um setor intensivo, precisa de energia. Aí se está promovendo pelo Banco Mundial, com uma empresa terceirizada projetando a construção de eólicas no mar no Brasil, são 104 projetadas para o país. Tudo isso na verdade são grandes negócios, para impulsionar essas cadeias de valor que são dominadas por esses países. Por exemplo, todos dizem que a China é uma grande produtora de aerogerador, sim mas a China produz aerogeradores a base de carvão, porque isso lhe dá maior competitividade, a discussão não é ecológica para a China, a indústria eólica é uma indústria. Então nós temos que desmistificar e fazer esse enfrentamento.

Por exemplo, se projetou para o Brasil, para o nordeste brasileiro, e o Ceará é ponta de lança, com a criação do hub, do Complexo Portuário do Pecém em conexão com o Porto de Rotterdam na Holanda que hoje é quem mais fecha contratos de compra e de venda de hidrogênio verde para o continente europeu. Isso foi feito na perspectiva de a partir dessa digamos potencialidade que é essa grande quantidade de empreendimentos eólicos no Nordeste, projetar uma indústria de hidrogênio verde. No entanto, no Brasil há uma dificuldade projetar uma política industrial, porque nós temos uma economia dependente, não há capital, não há orçamento para impulsionar um projeto soberano de país, para dizer sim nós vamos ter uma indústria de hidrogênio verde, agregar valor, vamos descarbonizar as nossas economias, e não a economia europeia, vamos tirar as termelétricas do Pecém, vamos fazer um aço verde aqui na siderúrgica. Não é isso que é projetado. O que está sendo projetado para o hidrogênio verde no Brasil, no Ceará, e na maioria dos projetos é a produção de hidrogênio verde na forma de amônia líquida para ser transportado em navios através desses hubs para Rotterdam, para a indústria alemã e para outras indústrias que precisam de energia. E não está saindo da promessa porque ao tempo em que o Brasil faz isso, no continente africano, no norte da África, se começa a construir uma rede de dutos para o sul da Europa. Se começa a construir uma rede de dutos na Alemanha, integrando a sua área industrial com uma possibilidade de produção de hidrogênio verde na África, que vai ser mais barato do que o importado do Chile, do Brasil. Para poder ter segurança é preciso ter pelo menos um contrato de 10 anos. No momento não se tem certeza de que vai haver capacidade de fornecimento nem de compra por isso ainda não saem da esfera dos projetos. A australiana Fortescue tem um processo de licenciamento, são 2 ou 3 que estão num estado mais avançado de processo de licenciamento, mas efetivamente não acontece. A submissão do governo brasileiro ao agronegócio é tanta, que o governo brasileiro deveria criar um marco legal para impulsionar o hidrogênio verde mas não criou, criou uma lei chamada Marco legal do hidrogênio de baixo carbono, é um negócio difícil de explicar e difícil de entender, mas eles colocam que é baixo carbono a emissão de 7 kg de CO2. Nos perguntamos o porquê, já que a Europa quer comprar hidrogênio verde, que não chega a 3 kg, porque esse marco de 7 kg. Simplesmente porque o agronegócio quer vender bioetanol, quer vender combustível para aviação, e esse é o padrão que vai ser estabelecido de produção de hidrogênio, porque nós vamos produzir hidrogênio a partir do bioetanol. Então o Brasil cria um marco legal que pode ameaçar sua possibilidade de venda de hidrogênio verde para o continente europeu em função da sua fragilidade diante do poder econômico.

MAM – A extinção da sociedade baseada em combustíveis fósseis realmente vai acontecer?

Soraya Tupinambá: É uma reconfiguração do processo produtivo, a extinção da sociedade baseada em combustíveis fósseis se aproxima, mas nunca vai se dar de maneira definitiva sem que haja um processo. Mas sim nós estamos cada vez mais nos aproximando dos limites planetários, e não pdoemos esquecer, que a nossa crise não é de carbono, este é só um dos 9 limites planetários que são monitorados mundialmente por um instituto em Copenhague. Dos 9 limites planetários que incluem biodiversidade, a água doce, os ciclos de geoquímico de nutrientes, que inclui uma série de elementos importantes para a vida no planeta, 6 já foram ultrapassados, e o sétimo foi alcançado recentemente que é a acidificação dos oceanos. 7 dos 9 limites planetários já foram vencidos, suas fronteiras foram extrapoladas, então nós não podemos reduzir a crise planetária há uma crise de emissão de carbono, isso não é unidimensional, a nossa luta é multidimensional, portanto, nós temos que fazer conexões da luta da mineração com aqueles que enfrentam eólicas, fazer a conexão com os usuários que vão ter suas contas de energia aumentadas em função dos interesses dos grandes lobbys de energia eólica.

MAM – Crise climática no Brasil, o que já estamos enfrentando?

Soraya Tupinambá: A última seca no Ceará foi de 2012 a 2017, foram 5 anos de uma seca severa, e as tendências é que a gente tenha uma seca de 7 anos, 10 anos, com maior profundidade. O Assentamento em Nova Santa Rita, no Rio Grande do Sul, que nós estamos acompanhando, de 2001 a 2024 teve 8 perdas de safra por inundações e uma por deriva de agrotóxico. Então estamos vendo como robustecer a resposta nas comunidades e da sociedade frente às emergências climáticas.

Eu tenho insistido que o Brasil, e sobretudo a sociedade civil, não pode virar as costas para o debate do clima. As pessoas dizem que não nos serve essa COP 30, que não é para a sociedade civil, como foram nas suas últimas versões, e isso é verdade, foram espaços hegemonizados pelos interesses dos países petroleiros. Assim foi em Dubai, assim foi no Egito, assim tem sido de fato, mas nós não podemos perder de vista que o Brasil é um dos países mais vulneráveis às mudanças climáticas, isso é uma questão existencial para nós.

Nós já chegamos a 1,5ºC no começo desse ano, ainda é preciso uma estabilidade ao longo de pelo menos uma década para nós concluirmos que já vencemos aquela que era a meta do Acordo de Paris, mas estudos mais recentes trazem uma situação muito mais grave. Um estudo da King’s College de Londres, traz que se isso se concretiza nós vamos ter 10 milhões de quilômetros quadrados, 6,7% da área continental do planeta se tornará inabitável para seres humanos devido a eventos de calor extremo com impacto ainda mais severo para idosos e populações vulneráveis. Nós nordestinos estamos numa região semiárida, o estado do Ceará é mais de 80% incluído dentro de uma área semiárida. Então essa é uma questão existencial para nós, não podemos abandonar essa arena política, muito pelo contrário, nós não temos que olhar para Belém, nós temos que olhar para o momento político e desdobrar esse debate em todo e qualquer auditório, salão comunitário, e fazer esse debate, fazer essa disputa, porque é uma disputa existencial.

Quem é Soraya Tupinambá?

Foto: Jerê Santos

Graduada em Engenharia de Pesca pela Universidade Federal do Ceará, Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela UFC e Mestre em Gestão de Áreas Litorâneas pela Universidade de Cádiz – Espanha. Tem experiência em Meio Ambiente em diversos aspectos relacionados a esta área tais como: Gestão da água, Gestão da Zona Costeira, Uso e Ocupação do solo, Populações Tradicionais, Populações indígenas, Educação Ambiental, Gestão Pesqueira, Conflitos socioambientais, agrotóxicos.

 

Movimento pela Soberania Popular na Mineração