Como as mineradoras se utilizam do estado mineral autoritário brasileiro para deslocar comunidades tradicionais e camponeses no Brasil
Por Marcio Zonta/ Comunicação nacional do MAM
Era manhã de segunda feira, 09 de setembro de 2024. Como fez nos últimos nove anos, Maria do Socorro retirou seu crachá da bolsa e se dirigiu ao portão de acesso da mineradora canadense Equinox Gold. Colocou o dispositivo de identificação na catraca para sua liberação: Acesso negado!
Atônita por alguns segundos, sem saber o que ocorrera com seu crachá, observou o segurança da portaria se aproximar e pedir-lhe que esperasse um pouco. Minutos depois, o homem liberou a entrada da funcionária e pediu que ficasse na portaria. Na sequência Maria foi autorizada a acessar a sua sala, onde trabalhava como Supervisora de Mina da empresa.
Já desconfiada, tentou acessar seu computador, suas senhas estavam bloqueadas no sistema e seu computador não correspondeu. Foi questão de instantes para que Maria do Socorro fosse chamada no departamento de recursos humanos. Seu chefe, meio sem jeito e dizendo se surpreso, disse ter recebido ordens superiores para demiti-la. A razão, segundo ele: “redução de quadros”.
A tal redução de quadros até poderia ser o real motivo da demissão de Maria do Socorro, não fosse os ocorridos na véspera e dia do feriado da independência do Brasil. “Seis e sete de setembro foi quando a mineradora, começou a destruir parte da vegetação e plantação do sítio de minha família, que vive do sustento dessa terra por quase 100 anos”, relata Maria do Socorro.
Mesmo trabalhando dentro da empresa e tendo acesso ao conhecimento de áreas licenciadas de operação da mineradora, Maria teve uma grande surpresa ao se deparar com a ação das maquinas que moíam toda vegetação que viam pela frente.
“Fui para cima das maquinas e ordenei que eles parassem, pois não havia nenhuma legitimidade a destruição que estavam causando no sítio, não era possível aquilo acontecer e foi dois dias de batalha contra as máquinas que insistiam em voltar toda vez que abaixávamos a vigilância”, relembra.
As famílias ainda realizaram protestos fechando a via que dava entrada das maquinas à mina e às propriedades rurais, mas a justiça já tinha se decidido em favor da mineradora e emitido uma imissão de posse assinado pelo juiz Rodrigo Otávio Terças Santos, da comarca da cidade de Candido Mendes (MA), que autorizava o uso da força policial para qualquer um que obstruísse o trabalho da mineradora.
Direito mineral autoritário
Conforme documentos apresentados pelas famílias, esses sítios são titulados no Instituto de Terras do Maranhão – ITERMA, com registo em cartório, que chegam a datar 70 anos, além de possuírem as posses comprovadas com benfeitorias, como casas de forno, casas de alvenaria e açudes.
Porém, nada disso foi levado em consideração para destruição de parte da propriedade do pai de Maria do Socorro, agora rebatizada de lote 80A pela mineradora canadense, que se utilizou do famigerado Código de Minas criado pelo período ditatorial brasileiro, por um decreto lei, número 227, de 1967, para avançar sobre o território.
“De modo geral o processo da mineração no Brasil está pautado pelo Código de Minas de 1967 e ele é autoritário. Depois da constituição de 1988, toda e qualquer lei anterior precisa ser interpretada e precisa ser considerada a luz da nova constituição. Isso não acontece na mineração, porque esse código mineral de 67 não vai considerar as pessoas afetadas, povos e comunidades tradicionais, porque essas pessoas antigamente sequer eram consideradas sujeitos de direito”, explica a advogada Larissa Vieira, que integra o Coletivo Margarida Alves, de assessoria jurídica popular.
Na tentativa de reverter a situação na justiça, a família de Maria do Socorro esbarrou em outro termo a favor da mineradora, a chamada servidão mineraria, utilizada como argumento pelos desembargadores para proteger a atividade mineral da Equinox Gold.

Dona Maria do Socorro segue firme, enfrentando obstáculos diários para manter vivo o território onde construiu sua história. Foto: Isabele Silva
“A mineradora entra com o processo na Agencia Nacional de Mineração (ANM) para pesquisa e posteriormente mineração na lavra, que quando concedida, a ANM faz um laudo e a mineradora precisa declarar essa área que está sujeita a lavra e a área do projeto, na sequência a área se transforma de utilidade pública e aí a empresa que fica detentora dos direitos minerários recebe essa figura chamada servidão mineraria”, diz Larissa.
Segundo a advogada, a servidão mineraria é um “instituto do direito de propriedade porquê é uma forma de intervenção do estado na propriedade. Então esses terrenos onde se encontram as jazidas minerais ou as áreas limítrofes ele pode estar sujeito à servidão mineraria e, portanto, ficando em domínio da mineradora, cabendo apenas a indenização aos proprietários rurais”, comenta
A ANM concedeu a servidão minerária a Equinox Gold em 22/11/2022. No entanto, a canadense agiu silenciosamente por quase dois anos até incidir sobre o território da família de Maria do Socorro e de seus vizinhos.
O caminho entre a entrada da comunidade e a casa de dona Maria do Socorro está tomado pela lama e em condições precárias. Um trajeto difícil, marcado pelo abandono e pelo impacto direto da mineração na vida cotidiana.
Imagem: Isabele Silva
“Pelas regras de procedimento da ANM, muitas das vezes esses processos correm em sigilo poque as empresas alegam interesses econômicos, então as pessoas não ficam sabendo. Só ficam sabendo quando a mineração está nas portas dos seus quintais”, lamenta a advogada.
Não se sabe ao certo no Brasil e no mundo, quantas pessoas sofreram com a insegurança da posse ao enfrentar projetos de mineração. Entretanto, um relatório realizado a pedido do Banco Mundial, elaborado por Michael Cernea (An operational Riskis Reduction Model for Population ResettLement), apontou que 15 milhões de pessoas no mundo, anualmente, foram afetadas por empreendimentos de mineração e agronegócio no decorrer da década de 2000.
Por fim, vale ressaltar, que o juiz Luiz Gonzaga Almeida Filho, que assina uma das juntadas do processo intercedendo a favor da mineração contra a família de Maria do Socorro foi indiciado pela Policia Federal (PF) na operação 18 minutos. Ele é acusado de participar de um esquema de venda de sentenças no Maranhão.
Mineração x saúde
A Vila Aurizona, pertencente ao município de Godofredo Viana, tem 6 mil habitantes e é uma das mais populosas da cidade. É nela que se instala o projeto de mineração de ouro em 2007 e que a partir de 2016 foi assumido pela Equinox Gold, que desde então não parou de expandir.

Máquinas da empresa Equinox Gold operando dentro da comunidade, cenário do avanço sobre territórios tradicionais. Foto: Isabele Silva
Segundo informações do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), a projeção da empresa é chegar a um pico de produção anual estimado em mais de 160.000 mil onças de ouro por ano, saindo das 130.000 mil onças atuais.
Nesse crescimento, incessante da empresa, nos últimos dez anos, não faltaram crimes ambientais e problemas de saúde em decorrência dos mesmos. Em 4 de novembro de 2018, ao dinamitar um desmonte de rocha, houve uma desestruturação das pilhas de estéril, que desmoronou e bloqueou o acesso da Vila Aurizona à cidade e chegou até uma região de mangue e igarapés. Em 2021, um rompimento de uma de suas barragens contaminou o rio Tromaí, o lago Juiz de Fora e a Lagoa do Cachimbo. À época, aproximadamente1.500 pessoas ficaram sem acesso a água potável.
Com o tempo esses dois crimes ambientais acabaram com a água potável que vinha desses rios e a empresa passou a disponibilizar 9 galões de 20 litros de água para Vila Aurizona para cada família, por semana “Quando eles falham na entrega dessa água que usamos para cozinhar e beber, temos que comprar essa água que chega a custar 10 reais o galão, só que atrasa tudo e o comércio fica prejudicado, tendo que fechar por alguns dias”, reclama dona Gisele da Silva, proprietária de um restaurante.
Conforme relatório enviado em 2021 ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) pelo pesquisador da Universidade Federal de Viçosa (UFV) Tádzio Peters Coelho, a Vila Aurizona sofreu mudanças drásticas com atividade da mineradora canadense avançando sobre os territórios e segundo ele a situação de abastecimento de água pode piora.
“As bacias hidrográficas e seus rios, os lençóis freáticos, assim como inúmeras áreas de recargas de aquíferos existentes na região, incluindo brejos e pequenos igarapés e rios, podem sofrer com a contaminação, destruição e assoreamento causados pela mineração de larga escala”, explica.
No município, a água é utilizada para diversas funções econômicas, como criação de peixes em açudes, para deixar a mandioca de molho nas fontes de água, sedição dos animais e irrigação e plantações.
“Por isso, parte da população da região é extremamente sensível a alterações da água e redução da oferta da mesma, tendo em vista que a empresa utiliza água na limpeza, controle da poeira suspensa nas minas e na estrada de acesso à mina, e também nos processos de separação e beneficiamento do minério do ouro, o que gera sistematicamente rejeitos lamosos”, elucida.
O documento de licenciamento da lavra de Tatajuba, obtido pela reportagem, expõe mais um problema relacionado a questão hídrica durante a fase de operação da mina: “as atividades do Projeto Tatajuba resultarão na abertura e aprofundamento da cava, o que pode levar a interferências no nível freático, uma vez que o lençol se apresenta relativamente próximo ao nível de superfície, conforme dados preliminares”. O que “exigirá o bombeamento constante da água aflorante na cava durante a operação do empreendimento, resultando no rebaixamento do nível do lençol freático, mesmo que temporariamente”.
Outro elemento importante averiguado por Coelho em sua pesquisa está relacionado a qualidade do ar. “Quando estive na comunidade pude perceber que a extração, disposição e transporte do mineral, além das detonações para desmonte e fragmentação de rocha, na área de mina, lançam no ar material particulado que pode causar doenças respiratórias, oftalmológicas e dermatológicas”.
Além disso, Coelho atenta que embora as pilhas de estéril estejam dentro da área do projeto, elas estão muito próximas das comunidades da Vila Aurizona. “Esse material está muito próximas às casas (em torno de cinquenta metros), com altura média de cerca de trinta metros, e que parte desse material, mesmo dentro da área de mina, é levada pelo vento à comunidade enquanto poeira”.
Situação que sobrecarregou o posto de saúde de Godofredo Viana, que passaram e receber muitos trabalhadores das minas e moradores da Vila Aurizona com problemas respiratórios, como asmas e dermatites alérgicas, “o que pode indicar algum problema causada pela poeira gerada no empreendimento”, desconfia Coelho.
O pesquisador diz que in loco constatou que o posto de saúde recebe muitos trabalhadores às 17h, na troca de turno, com tosse, problemas intestinais e vômito. “Era uma loucura aquele monte de trabalhador da Equinox ou terceirizados doente depois de um dia de trabalho e o município tendo que arcar com ônus todo”.
Dados da rede do Observatórios de Segurança revela que o Brasil registrou mais de 41 mil crimes ambientais em 2023 e 2024, conforme informações da secretarias de segurança de nove estados brasileiros. O Maranhão aparece com 27,66% dos casos relacionado majoritariamente a poluição.

Caminho para o sítio da família de Maria do Socorro, tomado pela destruição provocada pela mineradora. Foto: Isabele Silva
Para advogada Larissa, o meio ambiente também deveria ser considerado de interesse público, assim como as mineradoras reivindicam sempre para conseguir emplacar seus projetos. “A reforma agrária deveria ser interesse público, as áreas de conservação deveriam ser consideradas interesses públicos, a preservação de nascentes, a água, enfim toda complexidade do meio ambiente paras as pessoas viverem saudáveis”, determina.
Essa matéria é fruto do projeto: Ampliação das Ações Voltadas para Área de Mineração, Saúde e Territórios- Impactos da Extração Mineral – FASE IV, em parceria do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MA) e Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ)
Movimento pela Soberania Popular na Mineração
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