Especulação de atividade mineral no território quilombola ameaça Vão do Moleque, uma das comunidades localizadas no Território Kalunga, na Chapada dos Veadeiros (GO).

A 140 km do município de Cavalcante, em Goiás, resiste o Vão do Moleque, comunidade que faz parte do maior território de remanescentes quilombolas do país, os Kalunga. O curioso nome vem de um aspecto geográfico – a serra que antecede a chegada na comunidade tem formato de um dedo, conhecido como Dedo do Moleque. A longa viagem até a comunidade em um caminhão pau de arara nos faz refletir sobre a força do povo kalunga, que percorreu quilômetros de distância para resistir à lógica escravocrata estruturante em nossa sociedade e simboliza, sob todos os aspectos, um lugar de resistência.

Em uma área de aproximadamente 260 mil hectares, eles vivem da agricultura familiar, com o plantio do feijão, arroz, milho, mandioca, banana, quiabo, entre outros. Esse uso do solo e da água, no entanto, pode estar com os dias contados, sob a crescente ameaça da chegada com maior força do poder predatório minerário na região. “A comunidade está sendo alvo de pesquisas para a deliberação de mineradoras explorarem nossos minérios, e como as empresas estão com esse foco, é de suma importância poder mostrar para muitos da comunidade a existência de 130 áreas, com pedidos de análise, que podem vir a ser mineradas”, conta a estudante de Licenciatura e Educação no Campo da Universidade de Brasília, Jordana Lima da Conceição, moradora do Vão do Moleque.

Segundo dados da Agência Nacional de Mineração, existem atualmente 130 requerimentos variados de estudos e análises de áreas apenas no território Kalunga: 17 desses requerimentos são de pesquisa, 93 deles de pesquisas já autorizadas, um requerimento de lavra (ou seja, que permite o aproveitamento do recurso mineral através da atividade minerária), nove de lavra garimpeira (atividade de aproveitamento de substâncias minerais garimpáveis) e três de licenciamento (que autorizam o início da operação da atividade ou empreendimento). A conclusão é de que, à medida em que forem aprovados, esses requerimentos sinalizam um potencial início de atividade extrativa mineral na região.

Baseado na premissa de que as comunidades localizadas no território Kalunga devem ser consultadas desde a pesquisa até a possível instalação de mineradoras em suas áreas, o Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM) esteve pela primeira vez em uma atividade formativa na comunidade, em uma parceria com as Associações Kalunga Comunitária do Engenho II (AKCE), a de Educação do Campo do Território Kalunga e Comunidades Rurais (EPOTECAMPO), a do Quilombo Kalungha (AQK), os grupos de teatro Vozes do Sertão que Lutam por Transformação (VSLT) e ArteKalungaMatec, o curso de Licenciatura em Educação do Campo (LEdoC) e o Programa de Extensão Kalunga (ambos da Universidade de Brasília – UnB).

Na programação, realizada no dia 9 de março, foi apresentada a peça “Se há tantas riquezas, porque somos pobres?”, do grupo VSLT, rodas de conversa sobre mineração e violência contra a mulher, uma oficina da boneca Abayomi, símbolo de resistência e tradição negra feminina, e apresentações de capoeira. “Por ser o primeiro encontro foi bastante produtivo. Contar com o envolvimento da comunidade na peça foi o fio da meada para puxar a roda de conversa, porque traz uma linguagem diferente para abordar a questão mineral. Nós mostramos os prós e contras do discurso da mineração e colocamos a realidade do município, que é um município minerado desde seu surgimento”, conta Ana Lêda Dias, da Coordenação Nacional do MAM e uma das diretoras da peça.

A comunidade rural de São José, próxima ao território quilombola, já sofre há muitos anos a exploração da mineradora Brasman, e o desenvolvimento no local continua precário. Caminhões passam diariamente abarrotados de minério, cedendo pontes, acabando com as estradas. O suposto desenvolvimento que eles tanto vendem, com melhores escolas, saúde e infraestrutura é, na verdade, o desenvolvimento dos próprios bolsos deles.

Esses falsos discursos que as mineradoras sempre impõem ao território onde tentam entrar foram reproduzidos por alguns moradores da região. “A primeira estratégia da mineradora é sempre tentar dividir a comunidade, para que não haja unidade contra o processo de entrada. Mas a partir das reações com a peça, que foi o momento mais importante porque foi lúdico, sai dos tradicionalismos de mesa para discutir questões sérias, com pitadas de humor e ironia, as pessoas conseguiram enxergar a realidade na qual estão inseridas. Deu para perceber a quem o discurso beneficiava”, afirma Jarbas Vieira, da Coordenação Nacional do Movimento.

É importante alertar para os impactos que afetam direta e indiretamente a comunidade, que fica com o passivo ambiental e social. “A universidade tem o papel de debater e de construir junto à sociedade. Cavalcante tem uma história com a mineração desde 1700, apesar de ainda não ter a presença das médias e grandes mineradoras. Por isso a discussão sobre os impactos da mineração ao redor dos empreendimentos extrativos é fundamental no diálogo com a sociedade, a comunidade deve conhecer os passos para que haja uma instalação do empreendimento, e não ser surpreendida por ele”, explica a professora de Geologia da UnB, Caroline Gomide, ressaltando que o caso de Catalão, em Goiás, já é bem diferente, por possuir grandes depósitos de nióbio e fosfato, que já são explorados por grandes empresas e alarmantes dados de câncer na população que podem ser associados à atividade mineral, segundo estudos realizados pelo Instituto de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

Para Jordana Lima da Conceição, moradora da comunidade e estudante da LEdoC, o encontro foi de suma importância. “Além de mobilizar os moradores é uma forma de nos unir mais na luta, trocar conhecimentos para que possamos fortalecer uma luta coletiva e não deixar que as outras pessoas decidam o que devem fazer dentro da nossa comunidade”.

A PRIMEIRA BONECA NEGRA
O encontro contemplou ainda, um dia após o 8 de março, uma roda de conversa sobre violência contra a mulher. Finalizado a roda, gerações de mulheres puderam participar de uma oficina de Abayomi, boneca de tradição africana que era produzida por mulheres escravizadas a partir de retalhos de suas roupas, durante o trajeto da África ao Brasil, nos porões dos navios negreiros. A boneca é feita a partir de nós em tecido e simbolizam também proteção, sendo um símbolo de resistência cultural do povo africano.

A vivência foi muito importante para a integração no debate da violência contra a mulher, inclusive porque, por volta de 2015, tiveram várias denúncias na grande imprensa sobre a violência sofrida por mulheres e meninas Kalunga. Para além disso, a oficina foi um símbolo de resistência histórica do povo quilombola – gerações de mulheres participaram e pudemos ver a reação de várias crianças se emocionando porque era a primeira boneca negra que tiveram contato.

Por Raquel Monteath/Coletivo de Comunicação do MAM