O Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM) vem, por meio desta nota, expressar sua preocupação com relação ao acordo judicial de conciliação que vem sendo construído entre a mineradora Vale S.A. e o Estado de Minas Gerais, referente ao rompimento da Barragem I, em Brumadinho (MG). Após este crime-tragédia que ceifou a vida de 272 pessoas e causou fortes impactos socioeconômicos e ambientais à todos os municípios que compõem a bacia do rio Paraopeba, uma força-tarefa formada pelas Defensorias Públicas e Ministérios Públicos do Estado de Minas Gerais e da União, bem como pela Advocacia Geral da União e pelo Governo de Minas Gerais, entrou com um Processo Judicial na 2ª Vara de Fazenda e Autarquias de Belo Horizonte pleiteando na Justiça que a Vale repare todos os danos causados à Minas Gerais em função do rompimento da Barragem I.

Até o presente momento, a Fundação João Pinheiro – que possui expertise neste tipo de cálculo – estimou que os danos sociais, econômicos e ambientais causados pela mineradora na bacia do Paraopeba foram, em termos financeiros, na ordem de R$ 54 bilhões. Todavia, o acordo judicial de conciliação que vem sendo arquitetado entre o governo de Minas Gerais e a Vale prevê o pagamento de apenas R$ 21 bilhões, ou seja, menos da metade do valor total até agora estimado no Processo Judicial.

Além disso, outro ponto de grande gravidade é que a construção deste acordo está sendo feita sem a participação das comunidades impactadas pelo rompimento da Barragem I, com a divulgação da minuta da proposta de conciliação apresentada pela Vale no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) sendo conhecida pela população apenas por um “furo de reportagem”, uma vez que todo o processo do acordo corre em segredo de Justiça.

Abaixo, detalhamos algumas questões centrais do conteúdo do acordo que está sendo debatido a portas fechadas, sem a presença da população afetada pelo crime:

Pontos-chave do acordo

Ausência de participação das pessoas atingidas

  • Ausência de participação tanto nas negociações quanto no sistema de governança que foi proposto;
  • Projetos de reparação (com exceção daqueles do Anexo 1.1 – comunidades atingidas) são definidos sem a participação das pessoas atingidas;
  • Anexo 1.1 é a menor parte, somente 3,7 bilhões, dentre os cerca de 20 bilhões do acordo;
  • No sistema de governança, atingidos(as) não têm poder decisório real na escolha de projetos e na execução do acordo; participam sem direito de voto; não têm poder de veto. Na prática, os projetos de reparação serão feitos sem eles (o sistema de governança proposto pelo Estado de MG já tinha uma participação deficitária, na proposta da Vale está ainda pior, ela foi excluída totalmente);
  • A Vale irá participar do sistema de governança (ainda que sem direito de voto), o que faz com que ela possa gerar pressão interna, devido ao seu poder econômico;
  • Não têm direito de participar na elaboração do plano de reparação integral (ele será feito por uma empresa privada de consultoria ambiental, contratada pela Vale, a Arcadis);
  • O direito à Assessoria Técnica Independente (ATI), para garantir participação informada, está em disputa; O MPMG defende a existência; a Vale quer que os próprios atingidos(as) paguem os custos da ATI (defende ser incluído no teto do acordo e abatido dos valores de indenização coletiva).

Acordo incluirá indenizações individuais

  • Na mídia comercial está sendo dito que o acordo não afetará indenizações individuais. No entanto, a Vale está propondo incluir no bojo do acordo o Termo de Compromisso da Defensoria Pública de maio de 2019, que definiu uma tabela provisória de indenizações individuais. A Vale quer que essa tabela seja o parâmetro da indenização individual, resolvendo o mérito do pedido de indenização de danos individuais homogêneos. Ou seja, a tabela de 05/2019 que seria, a princípio, provisória (poderia ser complementada se eventualmente se verificasse que os danos eram maiores), acabaria por tornar-se definitiva. Em outras palavras: danos individuais não integram o teto global do acordo, mas ainda está em disputa se as indenizações individuais de fato não forem resolvidas no processo coletivo, ou se vai haver o rebaixamento por baixo com base na tabela do TC da DPMG.

Valor destinado aos atingidos está muito baixo

  • Dos 54 bilhões de pedidos de indenização coletiva, o valor destinado às pessoas atingidas no acordo foi rebaixado para 3,7 bilhões (Anexo 1.1 – projetos destinados a comunidades atingidas). Isso é um trimestre de lucro da Vale. Não é valor suficiente para reparar todos os danos ocorridos ao longo da bacia (desestruturação econômica, perda de turismo, hotelaria, restaurantes, toda a cadeia econômica de trocas, comércio, produção rural, pesca, agricultura, deslocamento para fora do território, etc.). Caso o valor continue nesse nível rebaixado, os projetos para as comunidades atingidas não conseguirão fazer a reabilitação da economia local. Não concordamos, aliás, com a posição do MPMG que considera que o acordo será um “marco histórico”, pois pela primeira vez teremos um valor tão alto a ser destinado pelas pessoas atingidas. Se considerarmos os danos para o conjunto dos municípios afetados na bacia do rio Paraopeba e a potência econômica que é a mineradora Vale, este valor torna-se irrisório.

O acordo inclui projetos que não têm nada a ver com a bacia afetada

  • Por exemplo: metrô de Belo Horizonte e Rodoanel para a região metropolitana da capital mineira. Estes projetos foram incluídos pelo governador Romeu Zema e estão sendo divulgados amplamente pelo governo estadual para buscar garantir sua reeleição. Zema pretende suprir o déficit do caixa do Estado de MG com a indenização da Vale.
  • Verba para o Estado vai sair muito rápida com o acordo: 6 meses a primeira parcela. Última parcela em até dois anos, o que mostra um apontamento direto com o calendário eleitoral das eleições de 2022. Já os valores destinados às pessoas atingidas (muito menores do que os destinados pelo Estado) irão demorar 10 anos ou mais para serem executados.
  • A Vale propõe resolver tudo injetando dinheiro: quer somente pagar os valores para o Estado e ficar livre. Não há previsão de como essa verba será utilizada ou fiscalizada – a Vale deixa à cargo do Estado de MG, que por sua vez irá decidir por conta própria, como usará esta verba. Não há controle social. Não há previsão de participação de pessoas atingidas na utilização dos recursos. Não há qualquer tipo de controle pela ALMG ou pelo TCE-MG.

Cabe, também, ressaltar que este acordo está sendo encarado como um processo de resolução de conflitos. Portanto, após sua assinatura, quaisquer reivindicações das comunidades atingidas junto aos órgãos de Justiça dificilmente terão resultado, o que significa algo extremamente grave, pois falamos de um crime-tragédia que somente mostrará o tamanho do seu impacto a longo prazo. O crime do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, e todo o impacto na bacia do Rio Doce, é o exemplo mais notório de que os impactos se atualizam e persistem ao longo dos anos.

Também gostaríamos de destacar que a Vale deixa muito claro na minuta do acordo que a assinatura deste não implica em reconhecimento de responsabilidade administrativa ou penal por parte da mineradora, no que se refere ao rompimento da Barragem I. Ou seja: mesmo com todos os impactos e a morte de 272 pessoas, a Vale ainda considera ser inocente em todo o processo, o que repudiamos veementemente.

Por fim, nós do MAM, mais uma vez, nos posicionamos ao lado das comunidades atingidas e entendemos que nenhum acordo judicial pode ser firmado com a Vale sem a participação destas.

Brumadinho, 15 de dezembro de 2020.